Dos oradores que se manifestaram contra o plantio de maconha no Brasil na terça-feira (1º), dia da última reunião na Comissão Especial da Cannabis Medicinal na Câmara, a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) foi a única que trouxe uma alternativa à proposta. Ela afirmou que está trabalhando junto aos ministérios da Saúde e da Justiça para que o SUS forneça gratuitamente medicações derivadas da planta.
Apesar dela ter trazido um número muito baixo de pacientes beneficiados por essa medida, apenas 4 mil (enquanto a própria Anvisa já autorizou 9.540 pacientes, fora os milhares de atendidos por associações), a parlamentar afirma que esse número aumentará com o tempo.
Questionada então se o Estado brasileiro deve arcar com o custo superior a R$ 2 mil por unidade da medicação a política afirmou que é melhor pagar em dinheiro do que com vidas:
“É muito mais barato do que todos os problemas que você vai ter numa sociedade se liberar o plantio, porque isso vai levar a liberação da droga”, afirmou.
Para Bia Kicis, isso vale mesmo que se mande recursos para outro país.
“Favorecer a economia local a qualquer custo eu não concordo. Então, se for menos custoso para a sociedade pagar para alguém que está plantando lá fora mas que tem uma política forte de fiscalização ou é um país que já liberou a droga, paciência”, argumentou a deputada.
>> TELEMEDICINA. Seu diagnóstico simples, rápido e onde estiver. Agende uma consulta
Confira a entrevista completa
Cannabis & Saúde: Das pessoas que se manifestaram contra, a senhora foi a única que apresentou uma alternativa ao plantio durante a audiência pública. A senhora afirmou que está trabalhando junto ao governo para que o SUS forneça medicação de forma gratuita. Conte mais sobre essa iniciativa.
Bia Kicis: A gente não pode deixar de atender a necessidade dessa parcela da população que enfrenta esse problema, que não é fácil. Hoje eles são atendidos por meio de decisões judiciais. Quem entra consegue uma liminar satisfatória para cuidar do seu próprio caso. E a gente tem que pensar numa solução que não afete todo o país por causa de uma parcela que não pode ficar desguarnecida.
Eu fui atrás da Anvisa, do SUS, dos parlamentares que se opõem e lhes disse que nós temos que ser propositivos, ‘o que a gente vai oferecer no lugar?’. Então eu já estive no Ministério da Justiça, da Saúde. Hoje conversei de novo com um secretário do Ministério da Saúde. O Ministério está trabalhando para liberar essa substância, o medicamento à base de canabidiol e com THC gratuitamente para essas famílias.
Eles já estão tomando essa providência. Existe um pouco de burocracia? Existe. Por que para fazer essa integração ao sistema, tem que ter uma iniciativa de alguma empresa. Mas eu estou acompanhando de perto porque eu não aceito a gente não ter solução.
A senhora falou também na audiência da Câmara que seriam 4 mil pacientes, e eu queria saber de onde surgiu esse dado.
Esses 4 mil pacientes é o dado que existe que foi me passado pelos demais parlamentares que o Conselho Federal de Medicina admite como comprovado cientificamente, são as crianças que tem epilepsia refratária, que não conseguem ser tratados por outros medicamentos. Agora, por outro lado, vários médicos citaram Alzheimer, dores, mas que não existe uma comprovação científica. O que o CFM admite como certo é que esses casos tem resultado positivo. Então seriam de 4 mil a 5 mil crianças. Para esses não tem nenhum tipo de dúvida científica.
Esses seriam os primeiros a entrar no SUS. O resto talvez dependeria de aprofundar os estudos ou caso a caso, como você tem aí o tratamento compassivo, em alguns casos serão por decisão judicial por não ter uma política pública definida.
Mas só de autorização de importação de Cannabis pela Anvisa são mais de 9.500 pacientes.
Que sejam. se forem 10 mil, o estado vai ter que atender essas pessoas. Mas nós somos 200 milhões de brasileiros. Não se justifica autorizar o plantio porque os malefícios de você liberar o plantio serão tremendos. É como disse o deputado Luis Philippe (PLS-SP), será barato, mas para que valha a pena plantar, tem que ser em larga escala. Isso vai ter que ser usado como nos Estados Unidos, em alimento, chocolate, dessa forma industrial. E não podemos deixar que isso aconteça.
Eu conversei com o Kevin (Abraham) Sabet, que é especialista em política de drogas, ele foi consultor do Clinton, do Bush e do Obama. E o que ele me falou é que uma vez que institui essa política, não se reverte nunca mais. E ela é altamente danosa.
A minha questão é que um tema como esse não pode ser debatido em 13 seções numa comissão, mas um debate amplo na sociedade. E não a aprovação numa pandemia, em que o Congresso não funciona presencialmente. Me parece um jogo oportunista de quem sabe que não ganha se botar para votar com o plenário.
O medicamento que vende na farmácia custa R$ 2,1 mil o nacional, mas que o insumo é importado da Inglaterra, e o medicamento Mevatyl, que tem THC, custa R$ 2.800. A senhora entende que o SUS deve adquirir os medicamentos a esse custo, sendo que o custo de um remédio artesanal custa 10% desse valor?
Eu sei que já tem uma empresa no Paraná que está produzindo. Eu acho que você produzir não tem problema, já está autorizado o medicamento. Eu sou contra a liberação do plantio. Por que está esse preço, a gente tem que ver. Mas ainda que seja essa valor, ainda sai muito mais barato do que todos os problemas que você vai ter numa sociedade se liberar o plantio, porque isso vai levar a liberação da droga. Isso aconteceu em outros países que hoje eles lidam com esse problema e não conseguem reverter. Então os problemas econômicos são diferentes da questão financeira.
Eu fui procuradora do distrito federal muitos anos e o DF era obrigado a fornecer medicamentos que custavam milhões às vezes. E o estado é obrigado a fornecer. Eu acho até errado porque, às vezes se tira do orçamento que iria para uma população inteira para tratar duas pessoas. O que não é o caso desse remédio, está em torno de R$ 2.800, é caro mas não inviabiliza o orçamento. Então a gente tem que buscar a solução, essa saída parece fácil, mas pode sair custosa para a população.
Esse medicamento nacional é da Prati-donaduzzi e custa R$ 2.143 e tem esse valor porque a regulamentação da Anvisa não permitiu o cultivo aqui. Então o insumo é importado de uma empresa do Reino Unido. Ou seja, desse valor pago ao medicamento, grande parte vai para essa empresa do Reino Unido. O que a senhora acha dos nossos recursos estarem indo para essa empresa do Reino Unido em vez de fomentar uma indústria local?
Favorecer a economia local a qualquer custo eu não concordo. Então, se for menos custoso para a sociedade pagar para alguém que está plantando lá fora mas que tem uma política forte de fiscalização ou é um país que já liberou a droga, paciência. A gente não pode abrir a porteira. Porque onde passa o boi passa uma boiada. A minha questão não é com a despesa, mas a saúde da população, a saúde mental.
Se tiver que pagar um pouco mais para outro país para garantir a segurança da nossa população, que pague. Quanto os governos passados gastaram mandando dinheiro para países fora do Brasil? Para outros países? Sem nenhum benefício à população brasileira? Pelo menos estamos buscando um benefício para a população, não estamos jogando dinheiro em ditaduras comunistas.
Eu estou sabendo que o Canadá está com um estoque de maconha que não conseguiu desovar. Eles acharam que haveria um boom desses tratamentos com canabidiol e produziram muito mais do que o necessário e agora precisam desovar. Quem sabe a gente compra do Canadá em vez do Reino Unido? Então soluções existem, mas liberar o plantio não é uma delas.
Hoje existem mais de 100 decisões individuais de Habeas Corpus para plantio por pacientes que não tem condições de pagar pelo tratamento. Então as justiças têm optado pelo cultivo individual caseiro. E também tem duas associações de pacientes que tem essa autorização judicial. Dessa forma, o óleo produzido é muito mais artesanal do que farmacêutico. O que a senhora acha dessas decisões? Proibindo o plantio, a senhora não entende que essas decisões vão continuar acontecendo, seja por decisões individuais ou por associações de pacientes?
Eu militei muito tempo perante o Poder Judiciário como procuradora. Hoje eu sou legisladora, então entendo que há uma profunda diferença entre a atividade judicial e a atividade legislativa. O legislador legisla para toda uma nação. Toda lei tem efeito erga omnes, ela tem efeito para toda a população.
Uma decisão judicial tem efeito para uma pessoa, e um juiz, independente da situação da lei, ele sempre vai ter que se ater ao caso concreto, porque a lei nunca vai conseguir suprir todas as necessidades das pessoas. Então vai ter sempre uma situação em que não existe uma lei para aquele assunto, ou a lei não é completa. O juiz sempre vai ter que se ater ao caso concreto. E os efeitos dela são para uma pessoa.
Já uma lei, quando traz um resultado ruim, atinge de forma coletiva uma população e pode trazer um resultado negativo para todo o país. Então, esses juízes que dão essas decisões, eles estão certos, eles estão analisando o caso de uma criança, de uma mãe. Eles têm que dar uma decisão para cuidar daquela vida. E o impacto é sobre aquela família. Mas decisão que nós tomarmos como parlamentares vai afetar todo o país, todas as famílias. Então a gente tem que pensar nas que estão sofrendo, mas também nas que sofrem pelo motivo oposto, pelos jovens que estão usando a maconha, que causa danos seríssimos.
Não é uma atividade fácil a atividade legislativa. Então eu sou obrigada a pensar de forma mais ampla. Eu não me conformo em dizer não a essas famílias, ‘nós não queremos a lei e pronto’. Então eu já estou correndo atrás da solução, sem descanso. Hoje eu já estive com o Ministério da Saúde, ontem com o Ministro da Justiça, com o presidente da Anvisa. Em pouco tempo que eu entrei nessa briga.
Eu estou trabalhando para que essas famílias tenham uma resposta do Estado, mas não uma resposta que beneficia só a eles e causam um dano à sociedade.
Mas qual seria esse dano à sociedade se seria exclusivamente para produção de medicamento e industrial? É o medo que vá ser desvirtuado para tráfico de drogas ou para fins recreativos…
Vai ser. Não é medo. Todos os países que começou assim acabaram liberando. A intenção que tem por trás, é que o Brasil seja um grande país exportador de Cannabis. É claro que as pessoas que querem aprovar essa lei nunca vão falar. Mas a gente não nasceu hoje, a gente sabe que a preocupação dessas pessoas não é só com as criancinhas. Porque se fosse com as criancinhas, poderiam aprovar uma lei, como a do senador (Eduardo) Girão que autoriza o medicamento, que aliás a Anvisa já autorizou, mas não o plantio.
Nós não temos a menor segurança. Inclusive a Polícia Federal falou que não tem como fiscalizar isso daí. A hora que começar a plantar, não tem como fiscalizar. Não tem como limitar. Na lei vai ter dito que é limitado, assim como na nossa lei está dito que não pode ter população armada. Vai andar lá no Rio de Janeiro pra ver se não está cheio de gente armada com fuzis e tudo mais. Não é porque está no papel que vai ser daquele jeito.
Na sua opinião então é melhor pagar um pouco mais caro e para uma empresa de fora do que correr o risco de a produção vá para o uso adulto?
Não tenho a menor dúvida. Se a gente vai ter que pagar, é melhor pagar em dinheiro do que pague com vidas, vidas de adolescentes e com muito sofrimento na sociedade. Porque a liberação que vai acabar decorrendo desse primeiro passo vai acontecer. Então que se pague em dinheiro. É a forma mais barata de se pagar.
Até na lei (no projeto), está no Artigo 21, que fala dos produtos de Cannabis sem fins medicinais. E fica autorizada a produção e comercialização de qualquer produto de Cannabis obtido através do cânhamo industrial, desde que não seja destinação ao uso medicinal e que não se alegue finalidade profilática curativa ou paliativa. E aí vem todos esses produtos que não são para fins medicinais. Então é só ler a lei inteira que vai se entender a finalidade dessa lei.
Mas esses produtos serão sem THC…
Mas esse tipo de fiscalização é muito complicado. A própria polícia fala que não tem como fiscalizar. E num país desse tamanho… E para que dar balinha de Cannabis para as pessoas? Qual é a intenção? É para escoar essa produção! Porque não vai ser barato. Não tem jeito, não vai baratear se a produção não for enorme. E produzir muito não é para fins medicinais, essa conta não fecha.