Nos anos 2000, o paulista Flávio Formigoni foi incentivado por um professor na universidade a estudar a Cannabis. Porém, como a planta não era ainda reconhecida no Brasil nem estudada na faculdade, ele levou mais uma década para voltar a encontrar seus benefícios e se tornar médico do esporte.
Flávio nasceu em Garça, interior de São Paulo, e fez 3 anos de direito no Largo São Francisco pela USP. Chegou a fazer estágio na área e viu que não era o que queria. Na adolescência já gostava de esportes e praticava natação, então desistiu do Direito e foi fazer medicina. Escolheu a Universidade Federal de Santa Catarina porque queria aprender a surfar, já decidido a fazer medicina do esporte. Concluiu a faculdade em 2007 e em seguida entrou para a Força Aérea, onde serviu como oficial médico de 2008 a 2011. Lá, trabalhava com o grupo de operações especiais e lidou com preparação física e alta performance, reforçando sua resolução de trabalhar com medicina esportiva, concluindo sua especialização em 2015.
Já havia tido um primeiro contato com a Cannabis com 17 anos, em um intercâmbio nos Estados Unidos, em 1996, na Califórnia, estado americano conhecido por ter uma política mais moderna em relação à maconha.
Quando voltou ao Brasil, durante o segundo semestre de medicina, o professor de neuroanatomia – que era presidente do CFM (Conselho Federal de Medicina) na época – chamou os amigos: “Vocês aí que são surfistas, façam seu trabalho com alguma coisa sobre Cannabis medicinal”. Eles fizeram, e foi aí que Flávio descobriu o sistema endocanabinoide e a evolução dos estudos científicos.
Canabinoide sintético
Na mesma época, havia sido aprovado o Rimonabanto, medicamento sintético de canabinoide. Ele era usado para tratar uma síndrome metabólica que baixava o colesterol e melhorava a sensibilidade à insulina, diminuindo a gordura visceral e subcutânea. Era chamada de pílula da barriga. Só que seu uso foi suspenso depois de 3 anos, porque causava depressão e podia levar ao suicídio.
Apesar de não ser mais usado, o medicamento inspirou Flávio. Seu trabalho de endócrino foi sobre o Rimonabanto, porque ele achava que o canabinóide deveria ser usado em seu estado natural, e não sintético. O que era sabido na época é que o CBD podia ser usado apenas para epilepsia, mas Flávio já tinha relacionado que o CBD e o THC pareciam ter um efeito similar ao Rimonabanto.
O único problema é que a Cannabis ainda não tinha legislação no Brasil, e Flávio seguiu a vida. Só depois de formado voltou a estudar o sistema endocanabinóide, e encontrou pesquisas relacionadas ao metabolismo, perda de peso, ganho de massa muscular, área de metabologia. Apareceram estudos falando que o CBD melhora o funcionamento da mitocôndria e a capacidade do corpo de queimar gordura.
CBD na prática esportiva
Atualmente, o que Flávio mais estuda é o CBD dentro da medicina do esporte, com o objetivo de trazer para a prática clínica. Com seus atletas, usa o CBD para tratar de ansiedade e insônia. “Não podemos usar drogas convencionais porque elas baixam o rendimento. Nunca vou usar ansiolítico tarja preta, porque eles baixam concentração, raciocínio, memória, reflexos. Antidepressivos mexem em hormônio, sobem a prolactina e baixam a testosterona”.
Flávio não considera o CBD um medicamento, e sim, um suplemento, um fitofármaco isento de efeitos colaterais. “Acho muita sacanagem no Brasil o CBD estar ao lado de um tarja preta”. Lamenta e ainda emenda: “Para comprar o tarja preta basta pegar a receita e ir na farmácia. O CBD precisa da receita, de laudo e termo de consentimento”.
No Brasil, pela RDC 327, qualquer produto com CBD é considerado medicamento, só pode ser usado via oral ou nasal e precisa ter qualidade farmacêutica.
Apesar disso, o usuário de CBD não é barrado num teste antidoping, mas o usuário do THC sim. Em teoria, o uso do THC pode ser justificado. Na prática, nem tanto. Flávio conta o caso do seu paciente Pedro Barros, skatista profissional, que usa THC com receita. Ele estava participando do Vert Jam em Itajaí em 2018, e não passou no exame antidoping. Mesmo com a receita, foi penalizado e Flávio precisou fazer sua defesa. Apesar do fato de que de lá para cá as regras antidoping venham abrandando, Flávio prefere prescrever apenas o CBD.
Para poucos
O grande impeditivo continua sendo o preço. Os valores do produto ainda são muito altos no Brasil, porque o produto é quase sempre importado. A segunda barreira é que Flávio não pode prescrever como suplemento, mas apenas como medicamento. Portanto, pode tratar ansiedade e insônia. Ou preventivamente, se o atleta for sujeito a quedas e pancadas na cabeça, para encefalopatia traumática crônica.
Mas não pode receitar para imunomodulação e melhora da recuperação pós treino, por exemplo. “Com isso, o atleta brasileiro tem uma desvantagem enorme frente aos atletas pelo mundo”. Para se ter ideia, o CBD nos EUA é considerado um suplemento e chega a ser vendido no supermercado. O preço também é bem mais acessível: um frasco de 1000mg de CBD isolado, internet, aprovado pelo FDA, custa US$6,00. No Brasil, o vidro com 6g custa, com desconto, R$2.100,00.
É por esses motivos que Flávio atende atletas como Ricardo Nort (strongman) e Karol Meyer (apneia e ciclismo), que não fazem uso do CBD. Ele pode prescrever apenas para Vi Kakinho e Pedro Barros, ambos skatistas, pelo alto risco de impacto (uma queda pode ser de até 8m de altura).
As vantagens competitivas de esportistas profissionais
Os efeitos do CBD são sensíveis, pois atua como ansiolítico (fundamental para esportistas profissionais), anti-inflamatório, antioxidante, neuroprotetor, melhora na recuperação pós treino. Baixa a resistência à insulina, melhora a captação de glicose pelo músculo. Nas mulheres, melhora a TPM disfuncional e pode ser usado para tratar endometriose e regular o sistema hormonal. Para esportes de alto impacto, como MMA (e outras lutas), motocross, skate, ciclismo downhill, serve para prevenir encefalopatia traumática crônica.
Como para estes últimos, Flávio considera o uso do CBD como imprescindível, ele sempre receita. Para os demais esportes, por conta da dificuldade de prescrição, não. Com isso, atletas dos EUA, Canadá, Europa e Austrália já saem com uma enorme vantagem competitiva frente aos esportistas brasileiros.
Atividade física é saúde
Flávio só trata praticantes de exercícios físicos. Se recusa a atender quem não seja: “Medicina do esporte é usar o esporte como instrumento de promoção de saúde, é [medicina] preventiva. Quem não pratica esportes é uma pessoa doente”.
Ele explica que o músculo é uma glândula endócrina e que, sem exercício, não vai produzir miocinas, enzimas presentes no corpo e que tornam a pessoa saudável. Essas miocinas também têm muita ação no sistema endocanabinoide, que é o que controlar a produção dos hormônios durante o exercício. É o hormônio do corredor, que produz neurotransmissores que dão a sensação de droga, de bem estar. Achava-se que era endorfina, mas é a anandamida, um endocanabinoide. “A atual concepção de que saúde é ausência de doença está errada. Ser saudável sem exercício é picaretagem”.