Altair Lira, de 51 anos, é pai de uma jovem com doença falciforme, uma doença genética que causa sérias complicações. A sua luta com o tratamento da menina desde que ela nasceu, há quase duas décadas, levou este baiano a militar pela causa no Brasil, sendo hoje uma das maiores referências por políticas de atenção a esses pacientes.
A doença falciforme acomete mais negros que brancos e é hereditária. Os glóbulos vermelhos ficam em formato de foice ao invés de arredondados. Isso faz com com que eles morram rápido, causando anemia em alguns casos. Com isso, há obstruções do fluxo sanguíneo, dores crônicas insuportáveis e fadiga. Uma esperança de cura é o transplante de medula óssea.
Quando a filha de Altair Lira foi diagnosticada, ele se deu conta da falta de políticas públicas aos portadores dessa doença, que tem maior incidência na população negra. Em 1999 ele fundou Associação Baiana de Pessoas com Doenças Falciformes (Abadfal) e, dois anos depois, uma federação nacional dessas associações, a Fenafal. Em 2005, Altair auxiliou na formulação e implementação da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme.
Lira também tem atuação na antropologia. É professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da Universidade Federal da Bahia, onde também se formou mestre em saúde coletiva. Foi palestrante do TEDx Rio Vermelho em 2018. Sua próxima participação em seminário será no Medical Cannabis Summit, em agosto, quando participará de um painel sobre as associações de pacientes.
Antes, ele conversou com o portal Cannabis & Saúde.
“Nós queremos trazer (para o evento) a complexidade da doença falciforme, esse olhar de toda problemática da pessoa com doença falciforme para que os médicos, os pesquisadores, todo pessoal no campo da Cannabis possa colocar a doença falciforme como uma prioridade das suas pesquisas”, defendeu.
Altair Lira afirma que já existem estudos relevantes sobre a Cannabis para o tratamento de Parkinson, epilepsia, dor, mas na doença falciforme, que é uma doença sistêmica, não.
“Uma doença com dor, AVC, feridas, dificuldade na circulação sanguínea, facilidade de infecções. Então, como nós podemos pensar as várias possibilidade da Cannabis nesse sentido, principalmente no aspecto dor”.
O argumento de Altair Lira faz sentido. Apesar de poucos estudos, alguns já começam a aparecer. Em 2016, cientistas da Associação Europeia de Hematologia publicaram a pesquisa “Mecanismos específicos de receptores canabinóides no alívio da dor na doença falciforme através de inibição da ativação de mastócitos e inflamação neurogênica”.
O estudo analisou como o CBD e outros canabinoides são eficazes no tratamento da dor da doença falciforme e descobriu que o principal mecanismo era através da capacidade do CBD de estabilizar os mastócitos, que são uma das principais células impulsionadoras da inflamação e da dor no corpo. Também se demonstrou que eles reduzem a inflamação neuropática envolvida com a doença.
Confira a entrevista completa
Cannabis & Saúde: Qual sua trajetória até se tornar o cofundador da Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doenças Falciformes?
Altair Lira: Em 1999, nossa filha nasceu com anemia falciforme. Nós fomos estimulados pela médica dela, na época, a formar uma associação. Então eu e minha companheira, junto com outras pessoas, fundamos a associação baiana das pessoas com doença falciforme e viemos lutando por políticas públicas desde então.
Em 2001, nós conhecemos outras associações pelo Brasil e tomamos a posição de nos unirmos e formarmos uma federação. Então, naquele ano surge a Fenafal, e eu fui um dos fundadores, sendo coordenador de 2006 a 2013
O que faz a Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doenças Falciformes?
A principal ação dela é agregar as associações para que essas entidades possam lutar por políticas públicas e atender as pessoas com essa doença. Seja no campo da saúde, da educação, do trabalho. Então a fenafal é essa junção das associaçõe em busca de representatividade, de direitos.
O que é a doença falciforme? A que público acomete? Possui pesquisas científicas?
É uma doença genética relacionada ao sangue e que tem como característica, associado até o nome, a hemácia ficar em forma de foice. Isso se dá por um defeito genético na hemoglobina. Então esse defeito vai afetar todo o corpo, porque está relacionado ao sangue.
Todos os nossos órgãos recebem sangue. E as hemácias do sangue são em formato de foice. Ou seja, é um sangue que apresenta baixa qualidade de oxigênio, que vai entupir os vasos sanguíneos, gerando problemas sistêmicos.
Essa doença é originária do continente africano, parte da Ásia e parte da Europa, mas com maior prevalência na África. Com o tráfico das pessoas que foram sequestradas, escravizadas, há a entrada dessa doença no novo mundo.
Ela é uma doença prevalente, mas não exclusiva da população negra. Ela acomete hoje pessoas brancas e índios também.
Existem inúmeras pesquisas científicas, o primeiro relato é de 1910, então nesse ano, são 110 anos do primeiro relato científico, ela não é uma doença desconhecida.
A questão é que as políticas públicas para atender essas pessoas é que são recentes, a primeira delas é de 2005. Então, temos apenas 15 anos que se começou a pensar em atender e tratar pessoas com a doença falciforme.
Como é o realizado o tratamento da doença falciforme?
Com o passar dos anos, houve uma importante mudança de visão. Saiu-se de uma ação mais reativa envolvendo o que chamamos de média e alta complexidade, de pessoas com complicações de pneumonia, AVC, crises de dor, para uma lógica mais de prevenção e cuidados.
Então foi uma lógica que se voltou mais para atenção básica e prevenção dos agravos. Porque é uma doença que vai causar problemas em outros órgãos, secundários.
Então qual é o tratamento para a doença em si? Tem um medicamento chamado hidroxiureia, que é um quimioterápico utilizado inicialmente na área do câncer mas que apresentava como efeito subsequente um aumento da hemoglobina fetal. Esse é um tipo de hemoglobina que nós produzimos, quando adultos, em quantidade muito pequena. Porém, é ideal para pessoas com doença falciforme.
Tem também o ácido fólico, que auxilia na produção de hemáceas. E é feita toda uma cobertura vacinal, além das vacinas comuns, tem as vacinas especiais. Para a questão das consequências, nós temos os tratamentos para dor, para complicações como úlcera de pernas, a questão das feridas.
Há apoio do governo brasileiro para o tratamento?
O governo brasileiro instituiu em 2005 a política nacional de atenção integral às pessoas com doença falciforme. Então tem uma coordenação dentro do Ministério da Saúde e várias ações são desenvolvidas.
A questão que a gente precisa pensar é que é a doença de maior prevalência genética do Brasil. Por isso, precisaria ter ações que fossem articuladas entre os âmbitos federal, estaduais e municipais.
Então nós vemos um governo federal enfraquecido nos cuidados de agravos crônicos, com estados e municípios assumindo essa gestão dos cuidados sem essa articulação.
Nós precisamos de uma sincronia, porque é assim que se estrutura o SUS na sua estruturação, baixa, média e alta complexidade.
E a Cannabis medicinal para a doença falciforme, têm efeitos?
Os estudos relacionando Cannabis e doença falciforme ainda são poucos. O que nós queremos é trazer a complexidade da doença falciforme, esse olhar de toda problemática da pessoa com doença falciforme para que os médicos, os pesquisadores, todo pessoal no campo da Cannabis pesquisando, possam colocar a doença falciforme como uma prioridade das suas pesquisas e estudos.
Por que nós temos estudos sobre cannabis para parkinson epilepsia, de dores, mas na doença falciforme, que é uma doença sistêmica, vai ser nossa provocação no evento. Nós temos uma doença com dor, AVC, feridas, dificuldade na circulação sanguínea, facilidade de infecções, como nós podemos pensar as várias possibilidade da Cannabis nesse sentido, principalmente no aspecto dor.
Na sua visão, qual a importância do evento Cannabis Medical Summit para o mercado de cannabis medicinal no país?
Um evento científico ganha uma conotação importante porque auxilia muito a enfrentar os preconceitos. Nós estamos falando de Cannabis, não de maconha. Porque a ideia que se tem da maconha traz aspectos de preconceito que inviabilidade o debate.
Sabemos que o debate do uso da Cannabis está enviesado pela forma preconceituosa do uso da maconha na sociedade. Então tem um debate social a se fazer muito grande.
Eu associo muito ao momento que nós tivemos no Brasil sobre as células tronco. Quando participavam de conferências de saúde e era proibido falar de células tronco porque nós tínhamos grupos religiosos contra células tronco de embrião. Alegavam que iria ter uma fábrica de óvulos jogados fora.
Então, todas as conferências com a palavra célula tronco eram repreendidas, e nem se estava avaliando que são vários tipos dessas células, não só as embrionárias.
A importância desse evento, então, é trazer para um espaço científico essa discussão. Esperamos que gestores possam participar de forma que também possam aprender e estar conosco nesse debate.
Que recado gostaria de dar para as mais de 16 mil pessoas inscritas no evento, na data de hoje?
Que participem das mesas, acompanhem as discussões. Mas se cada uma dessas 16 mil pessoas levar o debate para mais 10 pessoas, serão 160 mil pessoas envolvidas no debate.
Eu gosto de convocar pessoas a dialogar, o maior resultado da participação dessas pessoas inscritas é que elas podem ser reeditoras dessa informação, replicar nas redes sociais para que mais pessoas venham debater e dialogar.
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