Político, escritor e jornalista Fernando Gabeira é provavelmente o mais famoso e antigo defensor da descriminalização da maconha no Brasil. Militante histórico do tema há quase três décadas, ele publicou o livro “A maconha” em 2002. Nele, discutia desde as funções terapêuticas da cannabis até o papel social da planta. Com essa visão de longo prazo, ele ainda considera “difícil” avançar na regulamentação no Congresso Nacional. Por outro lado, vê possibilidades de progressos regionais, como o que ocorreu recentemente no Rio de Janeiro.
Ao analisar o cenário, reconhece a mudança da opinião pública no aspecto medicinal, mas teme a associação que os conservadores fazem entre o uso como medicamento e a liberação geral da droga.
Leia a entrevista na íntegra:
Cannabis & Saúde: Apesar do preconceito ainda ser forte no Brasil, o número de médicos prescritores de Cannabis aumentou nos últimos anos. No aspecto medicinal, você acredita que há uma mudança acontecendo?
Fernando Gabeira: A única mudança que existe é no campo do uso medicinal.
Houve uma carga muito grande contra o uso medicinal com o argumento de que era uma espécie de tentativa de fazer passar todos os usos através deles. De que as pessoas que queriam legalizar o uso da maconha para o uso recreativo estavam usando o medicinal para romper as barreiras. Houve uma discussão, uma resistência, no interior do governo também, mas parece que no momento o tema está mais tranquilo.
O uso medicinal – que foi o ponto de ruptura, o ponto de mudança na política, que ainda é muito conservadora no Brasil – continua se ampliando.
C&S: Essa ampliação pode ajudar a mudar a mentalidade no médio prazo?
FG: Os conservadores temem isso. Que possa ser utilizada a partir do uso medicinal. Todo o trabalho é de demonização da Cannabis. Uma vez que começa a ser utilizada para coisas que ajudam as pessoas a melhorar sua saúde, ela passa a ser vista de outra maneira
E tem um impacto também as diversas iniciativas que são feitas no sentido de legalizar.
Uma mais próxima do Brasil é a do Uruguai, que é considerada uma iniciativa não muito exemplar, porque é um país pequeno, com condições culturais diferentes. Mas de qualquer maneira é bem próximo geograficamente do Brasil.
C&S: Quais são as perspectivas para um mudança no âmbito nacional?
FG: Com o governo que nós temos hoje, eu acho muito difícil que se avance mais do que isso.
Houve uma resistência interna muito grande com o Osmar Terra [Ministro da Cidadania do Governo Bolsonaro até fevereiro de 2020], que tinha um papel importante na época. Ele resistiu muito a esse uso medicinal.
De vez em quando o governo produz algumas audiências públicas nas quais trazem especialistas para dizer que, na verdade, a maconha não tem nenhum efeito medicinal, que é um absurdo.
C&S: Este é um Congresso conservador. Mesmo assim, existe a possibilidade de um espírito progressista avançar?
FG: Acho que é difícil de acontecer. Se examinar dentro do Congresso, tem uma comissão, tem uns deputados que se destacam, como o Paulo Teixeira [deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores], mas a média é muito contrária.
A suposição que eles têm é muito eleitoral, eles raciocinam em termos eleitorais, eles acham que há muito mais a perder eleitoralmente discutindo esses temas do que os enfrentando. Tanto que a judicialização é um exemplo disso.
Como o Congresso escapa ou afasta dos temas mais polêmicos, o Supremo necessariamente tem que dar uma palavra, como aborto, em certas circunstâncias, o uso medicinal da maconha, todos os temas acabam caindo no Supremo. Porque o Congresso não quer legislar sobre isso.
C&S: Com essa resistência reacionária, muitos acreditam que o caminho pelo Congresso se tornou mais difícil do que era antes. A judicialização se torna o único caminho?
FG: O caminho judicial não é o melhor. Não é o mais democrático. Este é um tema que deveria ser resolvido no Congresso. A média dos ministros [do Supremo Tribunal Federal] é muito mais progressista que a média do Congresso. A tendência é de que alguns temas sejam aceitos muito mais rapidamente no Supremo do que no Congresso. Mas o ideal seria uma solução a partir do Congresso, seria muito mais democrática, expressa muito mais a própria consciência nacional.
C&S: O que achou da regulamentação aprovada no Rio de Janeiro?
FG: Foi uma boa lei, no sentido que permite o uso, autoriza a pesquisa e, inclusive, até prevê financiamento de pesquisa nesse campo. Então aqui na Assembleia do Rio de Janeiro de um modo geral existe uma posição mais liberal sobre isso.
C&S: Lei aprovada, quais devem ser as dificuldades para se aprovar?
FG: No estado que o Estado está, há dificuldades para implementar qualquer coisa. O Rio de Janeiro está em uma calamidade financeira e administrativa muito grande. A começar pela tarefa principal que é atender as pessoas que sofrem de COVID-19. Você tem uma sucessão de secretários de saúde sendo derrubados e muita apreensão sobre a presença da polícia nesse setor.
E, por outro lado, tem um governador cujo processo de impeachment começou, foi autorizado pela maioria esmagadora, 69 votos a 1. É um Estado que você pode aprovar uma lei, mas está tudo em suspenso pela calamidade administrativa e financeira.
C&S: Quais as perspectivas nos outros estados do Brasil?
Se examinar a possibilidade de influência, existe uma presença ou influência grande no Uruguai e no Rio Grande do Sul. As trocas são grandes, é uma fronteira, as pessoas viajam frequente entre as capitais. Então, no sul, pela proximidade no Uruguai, pode surgir algo.
Há estados que avançam em outros campos [progressistas] e podem ocorrer avanços nessa área também [da Cannabis]. A Paraíba no campo do nudismo é avançada, como Santa Catarina também. Agora, a Paraíba no campo da pesquisa com a maconha também avançou muito, conseguiram autorização para realizar o trabalho. Então esses locais são candidatos a avançar.
C&S: Como está avançando a Cannabis no cenário internacional?
FG: O investimento feito nos Estados Unidos tinha uma expectativa maior de se ganhar dinheiro com isso. Investiram pesado na produção e no uso em alguns estados. Muita gente investiu muito dinheiro e os resultados não foram tão bons quanto se pensava. Apesar de alguma maneira existir um êxito comercial.
C&S: Muita gente fala dos impactos da pandemia na sociedade. O senhor enxerga um impacto específico da covid na evolução da regulamentação e do comportamento em relação a Cannabis? Ou não existe essa relação?
FG: Até o momento não tenho elementos para dizer que vai ter um impacto positivo ou negativo. Evidentemente, segundo se diz, o consumo deve ter aumentado em função da tensão provocada pela pandemia.
Ela pode ter aumentado a tensão. E aumentando a tensão pode ter aumentado também o uso. Porque a maconha tem um efeito calmante, um efeito tranquilizador.
Por outro lado, o consumo da maconha tem uma repercussão no pulmão, que é exatamente o órgão mais atingido pela COVID-19. Eu não tenho elementos para dizer que um número maior começou a fumar por causa disso ou se os que fumavam aumentaram o consumo nesse período. Acho provável. E é provável também que alguns tenham deixado em função de proteger o próprio pulmão.