Em ratos geneticamente selecionados para apresentar sintomas de epilepsia, tratamento crônico com a substância bloqueou o desenvolvimento de novas crises
Um estudo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, feito em modelos animais para epilepsia (ratos geneticamente selecionados para apresentarem os sintomas) mostrou que a administração crônica do canabidiol (CBD) evitou a progressão da doença. Os resultados do estudo mostram que o tratamento com a substância derivada da Cannabis impediu o recrutamento de novas áreas cerebrais no processo que dá origem à epilepsia em novas partes do cérebro.
Isso evitou o aparecimento de crises mais graves e associadas a estruturas do cérebro como hipocampo, amígdala e córtex no modelo que imita o tipo de epilepsia mais frequente em humanos, que é a do lobo temporal. As informações foram publicadas no Jornal da USP no dia 10 de julho.
A epilepsia é uma doença complexa na qual há perturbação da atividade das células nervosas cerebrais, sendo caracterizada pela ocorrência de crises epilépticas. De uma forma simples de explicar: essas crises são manifestações no paciente de um ‘mal funcionamento’ em um ou mais conjuntos de neurônios no cérebro.
O doutorando em Neurologia/Neurociências pela FMRP William Lopes é um dos pesquisadores. Ele contou que o modelo genético utilizado foi a linhagem Wistar Audiogenic Rat (WAR), animais que vêm sendo selecionados pela sua maior predisposição às crises epilépticas. Os estudos são realizados no Laboratório de Neurofisiologia e Neuroetologia Experimental (LNNE), dirigido pelo seu orientador, o professor Norberto Garcia-Cairasco.
Os animais da linhagem WAR desenvolvem crises epilépticas quando expostos a estímulos sonoros de alta intensidade (120 decibéis) e, por esse motivo, as crises são denominadas “audiogênicas”. “Quando expostos a estímulos agudos, os animais apresentam crises controladas pelo tronco encefálico, chamadas tônico-clônicas e, quando expostos a estímulos crônicos, manifestam as crises límbicas, aquelas mais severas e semelhantes às crises epilépticas do lobo temporal que são vistas em pacientes com a doença”, explicou o biólogo.
No estudo, o tratamento com canabidiol foi capaz de prevenir o surgimento das crises límbicas. Além disso, quando raramente ocorriam, as crises eram menos intensas. “O tratamento crônico conseguiu frear a progressão da doença, impedindo o recrutamento de novas áreas do cérebro e bloqueando as crises límbicas”, conclui o pesquisador.
Análise comportamental e de tecido
Inicialmente, o efeito bloqueador foi observado a partir de análises no comportamento dos animais, sendo confirmada uma atenuação das crises. Outra verificação desse efeito foi por meio de uma técnica laboratorial que detectou em tecidos cerebrais do animal uma proteína específica, a FosB. Essa proteína se acumula e pode ser quantificada em neurônios ativados cronicamente como na situação característica das crises epilépticas.
Outra análise feita durante a pesquisa concentrou-se na avaliação de como as crises crônicas e o tratamento com canabidiol (CBD) podem estar modulando, nos próprios neurônios, a expressão de receptores canabinoides do tipo 1 (CB1). O CBD participa da modulação de diversos processos cerebrais através de muitos mecanismos. Um deles é o do sistema endocanabinoide, composto pelos canabinoides endógenos (produzidos pelo próprio corpo) e seus receptores clássicos: CB1 e CB2.
Segundo Lopes, alguns estudos mostram que, em pacientes com crises crônicas, os receptores CB1 têm sua expressão alterada em algumas áreas do cérebro, como aquelas importantes para a ocorrência das crises límbicas. O resultado observado na pesquisa foi que o tratamento com canabidiol atenuou o aumento da expressão dos receptores CB1 nas crises crônicas.
Importância do estudo em modelos pré-clínicos
O canabidiol é uma substância que se apresenta como alternativa interessante para o estudo da epilepsia em modelos pré-clínicos, mas que hoje já está sendo utilizada em pacientes. De acordo com Garcia-Cairasco, “modelos pré-clínicos nos dão vantagens por antecipar possíveis efeitos, eventualmente até os efeitos colaterais, que seriam observados nos pacientes”.
No caso desta pesquisa, outro aspecto positivo é o fato do modelo conseguir imitar, mesmo que parcialmente, a complexidade da situação dos casos clínicos. “Além da susceptibilidade às crises epilépticas, os animais da linhagem WAR apresentam outras doenças neuropsiquiátricas, como aumento de ansiedade e características de comportamentos depressivos, entre outros. Há demonstrações claras de que pessoas com epilepsia também apresentam outros transtornos neuropsiquiátricos associados”, explicou o professor Norberto Garcia-Cairasco.
Desdobramentos
Uma extensa revisão acerca das pesquisas internacionais com canabidiol em modelos experimentais de epilepsia foi publicada em 2020 tendo Willian Lopes como primeiro autor e como o professor Garcia-Cairasco autor correspondente, na conceituada revista científica Neuroscience and Biobehavioral Reviews, onde são abordados os efeitos anticonvulsivantes do CBD, por meio de caracterização comportamental, em menor escala (ainda inicial) as abordagens eletroencefalográficas, e finalmente a busca por explicações de mecanismos de ação, devido a uma variedade enorme de possíveis vias e alvos por meio dos quais o canbidiol atuaria.
Os dados do doutorado de William Lopes também foram apresentados no final de 2019, em um Simpósio do Congresso da Society for Neuroscience, o maior evento de neurociência do mundo, em Chicago, e no Congresso da American Epilepsy Society em Baltimore.
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Texto: Marcelo Canquerino