Segue proibido o cultivo de cannabis no Brasil – mesmo para fins medicinais ou científicos. E, com isso, a maioria das associações trabalha na ilegalidade. Abrace, da Paraíba, é a exceção
Cassiano Teixeira conheceu o mundo da Cannabis medicinal em 2012. A mãe dele estava na UTI por conta de um quadro de bronquiectasia. Ele suspeitou de câncer – a doença que levara há pouco uma de suas tias – e se apavorou. De volta para casa, Cassiano cozinhou um pouco de maconha e deu um pouco do óleo para a mãe. Três horas depois, ele escutou a mãe fazer barulho com a louça. Ela fizera algo que não conseguia há três dias: comer.
Dali em diante, passou a ouvir relatos de outros pacientes sobre os benefícios da Cannabis. Soube, em 2014, que o irmão diagnosticado com epilepsia também poderia usar o óleo da erva. Reuniu tanta gente que conseguiam importar os medicamentos em massa, com desconto – chegaram a pedir 300 vidros de óleo.
Só que aí o dólar subiu. E os preços dos medicamentos foram às alturas. Poucos conseguiriam manter o tratamento. Cassiano se prontificou, mesmo na ilegalidade, a produzir óleo para ele e outros tantos pacientes. Começava a surgir em João Pessoa, na Paraíba, a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança – Abrace Esperança –, uma organização não governamental voltada para a produção de cannabis medicinal.
Na ilegalidade
Encarou todos os procedimentos de uma associação como essas, com assembleia e compra de equipamentos. Em setembro de 2015, registrou a associação. Com a anuidade paga pelos associados, produzia quase 20 garrafas de 60 ml por semana.
No segundo mês, a produção subiu para 60. Passou a plantar Cannabis. A cada avião ou drone que sobrevoava a associação, Cassiano se tremia de medo. “Eu não temia ser pego pelo plantio, mas pela distribuição do óleo. Porque aí não tem redução de pena. Eu poderia pegar até 15 anos de prisão por falsificação de medicamento”, conta Teixeira, diretor-executivo da Abrace. “Mas eu tinha um excludente de licitude. Eu estava salvando vidas”, completa.
Não que os óleos fossem de má qualidade. Pelo contrário, ao longo de 2016, Cassiano enviou o amostras para algumas universidades para comprovar a qualidade do produto. Tampouco distribuía a baixo custo remédios à base de Cannabis para qualquer pessoa. Para se associar à Abrace, era e ainda é preciso enviar cópias dos documentos pessoais, receita e laudo médico, e uma autorização de ajuizamento (uma procuração para que os advogados da associação cuidem das demandas jurídicas dos pacientes).
Àquela altura, quase 400 pacientes recebiam os remédios da associação. Com tantos casos em mãos, Cassiano passou o ano todo de 2016 coletando documentos (com análises feitas por universidade sobre a qualidade dos óleos) e relatos de pacientes.
Aval da justiça
Em setembro de 2017, a juíza concedeu o direito à associação de plantar, produzir e distribuir medicamentos à base de cannabis. Foi a primeira – e, até agora, única – a entrar com o pedido e conseguir judicialmente o pedido.
Desde então, a Abrace cresceu, comprou equipamentos para avaliar com exatidão a composição dos óleos (Cromatógrafo Líquido de Alta Eficiência), e soma 3.200 associados, com as mais diversas enfermidades, que compram o óleo por um preço bem menor do que o ofertado nas farmácias. Desse total, 20% têm a anuidade isenta, por não terem condições financeiras de bancar. Algumas famílias não pagam o remédio, nem o frete para receberem o óleo.
Outras realidades
Todas as outras organizações ainda vivem na fase anterior, de ilegalidade, que Cassiano e seus parceiros da Abrace enfrentaram. Na cidade do Rio de Janeiro, a Apepi (Apoio à pesquisa e a pacientes de Cannabis medicinal), fundada pela advogada Margarete Brito, entrou com um pedido para ganhar o direito legal de plantar e produzir o óleo. Espera que a liminar saia neste primeiro semestre.
Por enquanto, a Apepi se vira com o que pode, sob todos os riscos: produz óleo para cerca de 40 pacientes, no valor de 120 reais. “A diferença básica, em relação aos importados, é a concentração [dos canabinoides]”, explica Margarete.
“Na Califórnia, por exemplo, fazem medicamentos em alta escala, eles têm laboratórios completos. Tudo o que é feito dentro da legalidade fica melhor. Mas a gente se preocupa com a qualidade, claro, temos um óleo muito bom. E o que importa mais é que tem funcionado”, conclui, referindo-se aos pacientes que recebem o medicamento e obtém resultados positivos.
A legislação aprovada pela Anvisa no final de 2019, manteve a proibição ao cultivo em território nacional e estabeleceu critérios de qualidade para a produção dos óleos. E, por isso, apenas uma liminar pode garantir às associações direito de cultivo e fabricação. “Sempre acho que o enfrentamento e a exposição nos protegem. A gente faz tudo com muita transparência – e com muito apoio”, conta Brito.