Em entrevista ao portal Cannabis & Saúde, ex-presidente criticou a repressão da ‘guerra ás drogas’ defendeu o debate e a regulamentação da planta no Brasil.
Já faz quase uma década que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) se dedica ao tema de políticas de drogas, em particular a maconha. Em 2011, o político protagonizou, ao lado do médico Dráuzio Varella, o documentário Quebrando o Tabu, filme que questiona à eficácia da repressão às drogas no Brasil e traz exemplos bem sucedidos de outros países. Naquele mesmo ano, ajudou a fundar a Comissão Global de Políticas sobre Drogas, criada para promover um debate baseado em evidências sobre redução dos danos causados pelas drogas a pessoas e à sociedade.
FHC presidiu órgão de 2011 até 2016 ao lado de políticos renomados, como o ex-presidente dos EUA Bill Clinton, além de chefes de agências da ONU. Os relatórios da Comissão Global impulsionaram reformas no Canadá, Colômbia, México e Uruguai.
A experiência que Fernando Henrique adquiriu nesse período foi compartilhada na manhã do último sábado (07), durante um seminário chamado Cannabis Thinking, em São Paulo. O evento debateu possibilidades de novos negócios em torno da Cannabis medicinal no país e reuniu empresários, médicos e advogados envolvidos com o setor. Cannabis Thinking foi promovido pela The Green Hub, uma aceleradora de startups voltada ao mercado da maconha.
FHC foi o primeiro palestrante do seminário. Mas antes, o político conversou com a imprensa. A maior parte dos jornalistas estava interessada em arrancar uma opinião do ex-presidente sobre os protestos do dia 15 de março em defesa do governo federal e sobre a conjuntura política. O portal Cannabis & Saúde esteve presente e fez duas perguntas a FHC sobre o tema do evento.
C&S: Presidente, o Brasil vive um momento de crise institucional, e a Cannabis é um tema muito polêmico, que agora está sendo discutido na Câmara. Um tema polêmico num momento difícil. O senhor é protagonista nesse assunto e dentro do seu partido (o PSDB) se tem uma voz importante, a senadora Mara Gabrili, que é usuária medicinal. De que maneira o senhor, com a sua imagem, pode ajudar nesse debate?
FHC: Eu digo as coisas como eu acho que são. Sou uma pessoa hoje completamente interessada em ver como que o Brasil avança (nesse tema) e que as pessoas melhorem. Mas não é que eu esteja mexendo meus pauzinhos. Eu pertenço à Comissão Global de Políticas de Drogas, mas agora o Kofi Annan que é o presidente (ex-secretário-geral das Nações Unidas), o Clinton participa. Enfim: tem personalidades. Isso dá um guarda-chuva pra dizer o quê? Olha: nós estamos fazendo uma discussão que não tem nada a ver com a promoção do uso, mas como é que você evita o mau uso.
Eu procuro dar um testemunho disso o tempo todo. Às vezes, eu fico até surpreso com algumas declarações. O Clinton, por exemplo, é muito mais afirmativo nessa matéria. Muitos personagens importantes têm usado sua voz para dizer que o caminho da violência só leva a mais violência.
C&S: com relação à política de drogas, o senhor fala que não tinha noção quando era presidente, por isso não teve uma mudança brusca, o que o senhor faria de diferente se tivesse uma outra oportunidade?
Veja bem: não é que eu não tenha feito. Nós criamos o Senad (Secretaria Nacional de Políticas de Drogas), e uma pessoa fundamental na Senad tinha também o meu sobrenome (Alberto Cardoso, então titular da Secretaria de Segurança Institucional), e o juiz Maierovitch (Wálter Fanganiello). O que foi feito naquele momento? No começo do governo eu ajudei a erradicar a maconha. E eu vi que isso não adianta, erradica num pedaço e cria noutro. A questão é disseminar a informação, como em tudo na vida. Você tem que ter convicção do que pode, o que não pode, o que faz mal e o que não faz mal. Tem que convencer as pessoas. E nós procuramos mudar a política, já naquela época, nessa direção. Quando eu percebi que a direção em que se ia, que era erradicar, não resolveria, não implica em desistir e não ensinar. Impondo, você resolve até certo ponto , depois não resolve mais, vão fazer escondido. A partir desse momento, pelo menos no meu governo, o que eu tentei foi isso. Agora, respondendo a sua pergunta: o que se pode fazer mais: é abrir o jogo. Vamos debater o que pode e o que não pode abertamente. Ou nós não vivemos numa Democracia?
No meu tempo, a questão da Cannabis era mais delicada, porque havia o pessoal do Ministério da Justiça que achava que tinha o monopólio da questão. Então criamos um programa que era bem de instrução educacional. Eu mesmo tinha uma ideia superficial nessa questão. No começo do governo nós apoiamos tirar do Nordeste plantações de maconha, e nada adiantava. Pouco a pouco nós fomos mudando de visão sobre as coisas, diante de fatos e não de visões. O que tem que ser feito, que é a nossa luta antiga: tem que regulamentar. Todas as drogas podem fazer mal, depende o uso. Mesmo remédio comum tomado em grande quantidade faz um mal danado, remédio para dormir, remédio para acordar, e tem muita gente que usa. Mesma coisa o Cannabis. Se você levantar de manhã e todo dia fumar, está perdido.
É preciso quebrar o tabu e deixar que as pessoas discutam. Não é que sou idealista, mas o governo tem que fazer campanhas explicatórias, sem que tenha uma visão já de partida: “vai fazer mal”. Depente do uso. Cachaça, todo mundo toma e faz mal se tomar demais. Vinho, tem gente que toma todo dia. Eu acho um exagero, e vai torrar o fígado. O governo tem que esclarecer e deixar que as pessoas decidam. Isso aqui é uma democracia e só a repressão não vai adiantar.
Confira outras perguntas feitas ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sobre políticas de drogas durante o evento Cannabis Thinking.
A Anvisa autorizou a venda de medicamentos à base de Cannabis, mas o que o senhor acha que a gente pode ter por aí visto que o governo é resistente ao assunto
O governo pode ser resistente mas a vida se impõe. Nós temos um vírus aí, vai ter que se importar muitos remédios, e alguns remédios à base de Cannabis. Eu sempre fui favorável a que houvesse uma regulamentação. A questão da repressão pela repressão, o resultado é pequeno. Eu pessoalmente não fumo nem cigarro, tenho horror a isso. Não é questão pessoal, é questão de sociedade. Você nõa pode deixar que venha se formando, sobretudo nas américas, de que na marra vai se ganhar essa guerra.
O senhor acha que dá pra dissociar a discussão da Cannabis medicinal da Cannabis para uso recreativo?
Claro que não! A família tem que cuidar da questão do uso recreativo, cada pessoa tem que saber o que pode e o que não pode. Pega o álcool: faz um mal danado se tomar demais. Todo mundo toma um brinde de álcool, agora se ficar bêbado todo dia, vai parar no hospital. A Cannabis é a mesma coisa. No Brasil, nem se cogita legalizar, mas tem que regulamentar. Por que isso aqui é um país indisciplinado, com lei ou sem lei o pessoal usa. Então é melhor que se use com regulamento, que não se exceda. E que as famílias cuidem do assunto. Não estou pregando o uso de Cannabis.
Onde o senhor acha que está a maior dificuldade para a gente avançar nesse tema no Brasil?
Os políticos tem medo de entrar no tema, porque acham que vão ser acusados disso e daquilo. É verdade: eu não fui acusado de muita coisa? E daí. Acusam e depois com o tempo veem que não é assim. Mas tem que tomar posição, e não é só na Cannabis. Se entra na política para dizer sim ou não no que se está debatendo, nem sempre você está certo. Mas quando você tem uma causa que você acha que é justa, tem que lutar por ela.
O Brasil está caminhando numa direção contrária a essa visão mais progressista da descriminalização das drogas. A gente vê uma marcha no dia 15 muito identificada com a família. Para onde o Brasil está caminhando?
Não só o Brasil, o mundo passa por ondas, e agora é uma onda bastante conservadora, reacionária mesmo. Então, no Brasil, um pouco dessa onda chega aqui. Eu sou partidário da liberdade e da Democracia. Qualquer manifestação a sociedade tem direito, desde que não saiam dos limites. Aqueles que tomam decisão é que não devem decidir em função de eventual reação popular. Claro que é importante levar em conta a reação popular, você tem que ser valores, mas o risco do Brasil é dos que tomam decisão ficarem com medo de afirmarem seus próprios valores.
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