Este livro abriu os caminhos no Brasil para uma discussão cuidadosa sobre os benefícios terapêuticos da Cannabis. E segue atual em sua missão de derrubar preconceitos – ainda mais em tempos de pós-verdade.
Shiva acabara de ter um desentendimento com a família quando saiu para passear pelos campos. Sentou-se debaixo de um arbusto para se esconder do sol. Olhou para uma planta e, curioso, colocou um punhado de folhas na boca. Segundo a fábula, Shiva, o mais importante deus hinduísta, sentiu-se tão revigorado que adotou a erva como sua favorita.
O grego Heródoto (484-425 a.C.) deixou relatos escritos do ritual dos povos citas em funerais: queimar
sementes de Cannabis, aspirar o vapor e “uivar como lobos”. Os assírios, no século VIII a.C., já sabiam do potencial da erva no tratamento de artrite, depressão, cálculo renal e enxaqueca. Os povos antigos da Ásia e Oriente Médio usavam Cannabis sem tabus ou preconceito – era só mais uma planta, às vezes até considerada sagrada, com efeitos terapêuticos e psicoativos.
Essas e outras histórias abrem o livro ‘Maconha, cérebro e saúde, dos neurologistas Renato
Malcher-Lopes e Sidarta Ribeiro. Lançado em 2007, quando falar de maconha era ainda mais
difícil, os cientistas buscam desmistificar o uso da Cannabis, tão mal vista após a metade do
Século XX. E provar o seu valor terapêutico.
Afinal, no ano de lançamento do livro, já havia se passado mais de 10 anos da descoberta do sistema endocanabinoide pelo israelense Raphael Mechoulam. Foi ele quem pesquisou e concluiu que nosso corpo possui dois receptores de canabinoides espalhados pelo cérebro e outros órgãos – e que nós, naturalmente, também produzimos esses canabinoides.
E isso faz toda a diferença!
“A presença ampla dos receptores de canabinoides no organismo e as evidências de que os endocanabinoides são influenciados por hormônios indicam que o sistema endocanabinoide funciona como um dos principais maestros na orquestração das funções vitais”, escrevem Malcher-Lopes e Ribeiro.
“Isso explica porque a maconha produz efeitos tão complexos e indica o fantástico potencial do sistema endocanabinoide como alvo de nossos remédios”, completam.
E a lista desses potenciais efeitos farmacológicos da maconha descritos no livro é longa. Os principais canabinoides – e não apenas os famosos THC e CBD – agem de diversas formas no organismo. São ansiolítico, imunossupressor, anti-inflamatório, bactericida, fungicida, antiviral, hipotensor, broncodilatador, neuroprotetor, estimulador do apetite, analgésico, sedativo, antiemético, anticonvulsivo, antitumorígeno. Também possuem propriedades redutoras de pressão intra-ocular, modulador neuro-endócrino, antipirético, antiespasmódico, antioxidante, antipsicótico.
Não bastava apenas descrever as propriedades terapêuticas, falar de neurociência, ou lembrar que
séculos atrás boa parte dos povos usava maconha sem qualquer pudor, seja recreativa ou
medicinalmente. Era preciso derrubar com fatos a histeria que ronda a mesa quando se fala em
maconha. Mas até hoje, tanta gente ainda reluta em aceitar um tratamento à base de Cannabis. Tem sempre alguém para dizer que maconha vicia ou que o uso contínuo mata neurônios e emburrece.
Nenhum desses argumentos tem embasamento científico. Malcher-Lopes e Ribeiro provam a inverdade dessas opiniões (e de outras tantas) com uma série de estudos e pesquisas.
“Maconha, cérebro e saúde” abriu os caminhos no Brasil para a discussão cuidadosa sobre os benefícios terapêuticos da Cannabis. E segue atual em sua missão de derrubar preconceitos. Ainda mais em tempos de pós-verdade – e difundir remédios que têm salvado ou melhorado a vida de tantos pacientes.
É um manual simples para entender o potencial terapêutico da maconha e seus efeitos no reequilíbrio do organismo.