Valor diz respeito apenas às demandas dos pacientes que entraram na justiça para ter acesso à remédios com canabinoides
O Ministério da Saúde gastou mais de R$ 40 milhões de reais, até outubro de 2023, só para comprar remédio à base de Cannabis para atender às demandas de pacientes que entraram na justiça para que o estado pague pelo tratamento.
Buscamos a assessoria de imprensa da pasta para entender melhor os números e saber quantos pacientes representam o número total de judicializações. Mas até o fechamento dessa edição, não houve resposta do Ministério da Saúde, contactado desde segunda-feira de manhã.
Demandas impactam no orçamento
De acordo com os dados da pasta, o volume de pedidos de medicamento a base de canabinoides, moléculas medicinais da Cannabis, cresceu quase 378%.
Em todo país, os gastos com a importação do extratado da planta saltaram de R$ 160.690, nos três primeiros meses de 2021, para R$ 767.906, no mesmo período de 2022.
Judicialização cresce 1.000%
Em audiência pública na Câmara dos Deputados, em novembro de 2023, o representante do Ministério da Saúde, Rodrigo Cariri, trouxe dados ainda mais significativos.
De acordo com Cariri, os processos judiciais – envolvendo remédios à base de Cannabis – cresceu cerca de 1.000 % em 2022. “Não é inteligente manter esse modelo para o próprio governo”, disse na ocasião.
Dados da pasta demonstram que enquanto em 2021, o gasto com a judicialização girava em torno de R$ 160 mil reais por ano, em 2022 o total ultrapassou R$ 1 milhão e 700 mil, para fornecer o medicamento importado aos pacientes mediante ordem judicial
128 demandas no DF
Por meio da Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei 12.527/2011), conseguimos levantar detalhes dos dados da judicialização de Cannabis no Distrito Federal no ano passado.
De acordo com a Coordenação-Geral de Gestão de Demandas Judiciais em Saúde (Ministério da Saúde – MS), entre 2015 e abril de 2022, foram atendidas 128 demandas de ações judiciais de pacientes do DF, relativas a medicamentos com Canabidiol (CBD) e afins.
Somando as 128 demandas judicializadas, foram entregues 5.468 unidades naquele período. Ao todo, o Sistema Único de Saúde (SUS) comprou mais de R$ 3 milhões de reais em medicamentos para atender apenas os pacientes da capital do país.
Custo anual por paciente no DF: R$ 25 mil
É como se cada paciente custasse ao DF quase R$ 25 mil reais ano. Valor bem abaixo da licitação realizada, por meio de pregão eletrônico, no município de Limeira (SP) no final do ano passado.
Custo anual por paciente em Limeira (SP): R$ 50 mil
O contrato, que chega a quase R$ 1 milhão e 500 mil reais, é para atender a judicialização de 30 pacientes. Para a cidade de Limeira, cada enfermo custará R$ 50 mil por ano para receber a Cannabis Medicinal, o dobro do valor licitado no DF.
É importante dizer que nem todas as demandas judiciais atendidas pelos estados dizem respeito a mesma concentração licitada. Por isso, o comparativo não é exato, mas serve de base para compreender o grau de distorção entre os valores dispendidos pelos estados para aquisição do remédio.
Ausência de transparência?
Para o advogado Rafael Kruel, especializado em judicialização de demandas médicas, é preocupante a ausência de transparência nesses processos de compra de Canabidiol, uma vez que não há padrões pré-estabelecidos para a aquisição do produto. “Custa caro e não é efetivo”.
Segundo o especialista, o número de ações judiciais ainda é tímido frente a quantidade de pessoas que poderiam se beneficiar do tratamento à base do extrato da planta.
2 milhões de autistas poderiam se beneficiar
“Proporcionalmente, somente no caso dos autistas, a quantidade de demandas é ínfima. Pare se ter uma ideia, a estimativa é de que há mais de 2 milhões de pessoas com autismo no Brasil”, contabiliza Kruel.
Na análise do advogado, Emílio Figueiredo, esse descompasso entre gasto público x número de pacientes beneficiados por ações judiciais, só pode ser equalizado diante da produção nacional.
Falta de regulamentação para o cultivo
“O principal gargalo para a produção nacional e atendimento ao SUS é a falta de regulamentação para o cultivo da Cannabis com fins medicinais no país”.
Solução que, segundo o jurista, cabe ao Ministério da Saúde baixar um ato administrativo para fazer cumprir o que já está previsto no Decreto 5.912/2006, que regulamenta a Lei de Drogas 11.343/2006.
Basta ato administrativo
“O decreto atribui ao Ministério da Saúde o poder de autorizar o cultivo de plantas, como a Cannabis, para fins medicinais – criando um caminho administrativo para que os interessados sejam autorizados”, orienta.
O professor de Direito e fundador da Rede Justa, Cristiano Marona, concorda. Para o advogado, o Ministério da Saúde precisa enfrentar o assunto com ciência e dados fiscais.
Existe uma Política de Cannabis Medicinal?
“Diante desse cenário em que há uma demanda crescente de judicializações. Qual é a postura do Ministério da Saúde? A pasta possui uma Política de Cannabis Medicinal que possa ser implementada”, questiona o jurista.
Para Marona, a pasta precisa ser proativa e buscar soluções inteligentes que possam não só gerar economia para os cofres públicos, mas estimular a geração de emprego renda e desenvolvimento científico para o país.
Saúde fiscal da Saúde
“O Ministério precisa pensar, de forma antecipada, como destinar orçamento para a Cannabis Medicinal, para garantir a saúde fiscal da pasta. Esse jogo de empurra precisar acabar”, alerta.
De acordo com o estudioso, que faz análises dos gastos públicos, o “cobertor é curto”. Portanto, o dinheiro que é usado para pagar demandas judiciais, deixa de ser investido na outra ponta, em alguma política pública que fica contingenciada.
“Existe uma consequência para essa omissão deliberada. Quando o Ministério da Saúde e Congresso se omitem, quem paga é o orçamento, e políticas públicas que deixam de ser executadas”, lamenta
Leis estaduais avançam
Paralelamente às decisões judiciais que obrigam o poder público a garantir o fornecimento de produtos terapêuticos à base de Cannabis, as leis estaduais para incluir os fármacos no SUS avançam em todo país.
Dos 27 estados, quase metade já aprovou leis para garantir a compra desses medicamentos via licitação pública para distribuir por meio da rede pública.
Até agora, foram aprovadas leis no Acre, Alagoas, Amapá, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, São Paulo, Tocantins e Rio de Janeiro.
Nem todas estão em vigor
Isso não quer dizer, entretanto, que todas as leis já estejam vigorando, mas já é uma forma de pressionar o Congresso por uma regulamentação nacional.
Para o advogado Rafael Kruel, os custos, certamente, seriam menores se o SUS efetivasse, de forma nacional e espontânea, a Cannabis na rede pública de saúde.
Judicialização demanda custos extras
“A judicialização da demanda gera custos extras que não existiriam caso o medicamento fosse fornecido sem burocracias. Além disso, havendo fornecimento via SUS, os preços poderiam ser negociados com os fornecedores baixando o custo”, prevê Rafael Kruel.
Já Marona vê como o caminho o cultivo em solo brasileiro, por meio de cooperativas e a possibilidade de promover o plantio do próprio medicamento.
Coexistência
“Não tenho a ilusão de que a indústria farmacêutica vá deixar de existir, mas é importante que haja uma coexistência com o cultivo associativo e o auto cultivo. Essa parte parece não ter apoio político, justamente por outros interesses que estão por trás”, analisa Cristiano.
É como avalia também o advogado, Emílio Figueiredo:
“Os gastos com aquisição de produtos de Cannabis por conta da judicialização vem aumentando, ano a ano, e resultando na entrega de recursos financeiros para o exterior. O que se mostra um contra censo diante da tradição agrícola e de fitoterápicos do Brasil”, conclui Figueiredo.
O uso medicinal da Cannabis já é legal no Brasil
O uso medicinal da Cannabis no Brasil já tem regulação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por meio das RDC 660 e RDC 327. No entanto, para isso, é preciso prescrição médica.
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