Durante os meus últimos 15 anos de carreira, desde a minha formatura até os dias atuais, uma patologia sempre me intrigou ao longo dos plantões: a tal de fibromialgia. E não se engane, isso vem ocorrendo desde o público de alta renda, como também em pacientes que recorrem ao sistema único de saúde (SUS). Isso quer dizer, então, que, essa tal de fibromialgia está além das condições socioeconômicas da população, atingindo qualquer camada da sociedade, com os seus devidos sinais, sintomas e particularidades. Mas o que é essa tal de fibromialgia? Seria mesmo uma patologia única? Seria um conjunto de patologias agrupadas? Uma síndrome? Existe mesmo um real tratamento? Bom, essas e outras perguntas eu tentarei abordar agora, baseado unicamente (e isso é importante, que fique claro) na minha experiência clínica como ortopedista e, mais recentemente, com o manejo dos extratos de Cannabis medicinal.
Se pegarmos a definição de fibromialgia na literatura médica, apoiada pela maioria das sociedades médicas, a grosso modo e bastante simplificadamente, teríamos a seguinte definição:
“Fibromialgia é uma doença reumatológica ou síndrome clínica, que se manifesta com dor musculoesquelético difusa e de caráter crônico, associada à fadiga (cansaço), sono não reparador, alterações do humor, memória e atenção, ansiedade, depressão e até mesmo distúrbios gastrointestinais”.
Só de ler isso, a gente já sente dor, não é mesmo?
Exatamente, tenho visto pacientes que relatam dores até na ponta do fio de cabelo ou mesmo nas unhas dos pés; outros que dizem que o vento lhe dá choque, que os músculos se rasgam por dentro e todos eles são hipersensíveis ao toque, ao tato. Se isso acontece em uma grande parcela da população, e os estudos dizem que tem prevalência de 5% nos consultórios de clínica médica (e até 15% nos consultórios de reumatologia), então, obviamente, estamos diante de um inimigo muito desafiador.
E, sim, você já deve estar pensando, ela realmente acomete a população feminina, na grande maioria dos casos (de cada 10 pacientes, 9 são mulheres aproximadamente). Nesse sentido, tenho certeza de que, quando você pensou em fibromialgia, você lembrou de alguma pessoa conhecida sua, que seja mulher (uma amiga, uma parente próxima ou uma paciente bastante frequente no seu consultório). Isso quer dizer que poderíamos especular que essa tal “síndrome reumatológica” tem relação direta com hormônios femininos, ou melhor, com a falta deles (lembre-se de que estou dizendo, especular). Digo isso porque a maioria esmagadora das pacientes já se encontram no climatério ou menopausa, pelo menos as que eu venho acompanhando.
E por que disso? Me arrisco a dizer que, a falência ovariana e o baixo nível de estrogênio (além de progestógenos e andrógenos) nessa população pode desencadear distúrbios na manutenção da massa óssea e massa magra esquelética, culminando em processo catabólicos, como a osteopenia/osteoporose, sarcopenia e distúrbios da cartilagem, como condropatias, artrite e osteoartrose. Assim como a falta do estrogênio também traz muitos sintomas relacionados ao sistema nervoso central (ansiedade, depressão, fadiga, insônia e queda da libido). É, realmente estamos mesmo diante de um inimigo que ataca em todas as frentes.
Acredito que não seja necessário lembrar aqui que essa doença não necessita de exames específicos de imagem ou laboratoriais para ser diagnosticada – seu diagnóstico é basicamente clínico
Logicamente, os pacientes já nos procuram com outros diagnósticos diferenciais e sob tratamento de outras comorbidades, já anteriormente investigadas e diagnosticadas. Mas a própria fibromialgia em si, não necessitaria mesmo de exames. Quem nuca atendeu uma paciente portadora de fibromialgia que levante a mão. Ela chega ao consultório com sacolas e sacolas de exames, com idas e vindas ao hospital, clínicas e ambulatórios. Em uso das mais diversas medicações alopáticas e, muitas vezes, com pouquíssimo efeito significativo. Elas mesmas já sabem sobre as suas patologias de base, seja ortopédica, reumatológica, psiquiátrica ou outras.
E o mais perturbador é que, na grande maioria dos casos, essa “polifarmácia” feita pelos pacientes não vem trazendo reais benefícios aos seus sintomas, os quais, muitas vezes, somam-se aos efeitos colaterais dos próprios medicamentos. Dentre estes, estão os antidepressivos/ansiolíticos, os indutores e manutensores do sono, os analgésicos comuns, os analgésicos opioides e anti-inflamatórios (não esteroidais/esteroidais).
Tá, mas Doutor, sem mais de longas, como vem tratando a fibromialgia?
Teria então alguma solução no universo da Cannabis?
Qual a sua experiência em relação à isso? Os resultados são superiores se comparados aos medicamentos tradicionais? Foi exatamente em relação a essa pergunta, que decidi escrever esse texto. Então, vamos lá!
Temos que lembrar que se trata de uma síndrome (conjunto de sinais e sintomas agrupados em uma patologia única), e isso irá exigir do médico e do paciente uma abordagem multidirecional.
Considero o passo número um controlar a dor mais aguda, pois ela pode ser o gatilho do quadro psicológico, como a ansiedade, a depressão e, consequentemente, a perda da qualidade do sono. Isso nos leva, já de cara, a entrar com a nova medicação (Cannabis) e manter a medicação de uso contínuo da paciente.
Nesta fase, ainda associo medicações alopáticas ou ajusto estas, baseado nas experiências positivas e negativas da paciente. Tento retirar aqueles medicamentos que, obviamente, estão ineficientes (ou contribuindo com a manutenção dos sintomas). Mas, calma: faço isso sempre em comunicação, aprovação e colaboração dos colegas especialistas.
Para fins didáticos, irei listar a ordem dos acontecimentos nessa minha humilde abordagem:
- Inicio colhendo uma história clínica completa, verificando os exames já trazidos e solicitando “sempre” um exame laboratorial atualizado. Este nos servirá como base de comparação de marcadores, os quais a Cannabis tem o poder de modificar (marcadores hepáticos ou coagulograma, por exemplo). Desde o início, solicito ao paciente assinar termo de consentimento de que a Cannabis ainda se encontra como uma medicação de segunda ou terceira linha e que sua eficácia, em muitos casos, não tem comprovação científica robusta (muitos dos estudos encontram-se em fase pré-clínica).
- Nesta fase inicial do tratamento, eu ainda costumo associar analgésicos para quadros agudos de dor. Lembrando que os benefícios do uso do óleo, provavelmente, serão percebidos entre a primeira e segunda semana de tratamento, a depender da sensibilidade individual de cada paciente. Mas é muito comum eu ainda prescrever analgésicos simples ou até mesmo opioides, antes da constatação do efeito analgésico dos canabinóides.
Mobilidade, flexibilidade e força muscular são essenciais à manutenção das estruturas músculos-articulares.
Sempre que possível, gosto de incentivar o início de atividade física imediata, por mais branda que seja. Idosos ou pacientes mais debilitados, tento convencê-los das pequenas caminhadas, exercícios com caneleiras de peso, elásticos, alongamentos para a flexibilidade e exercícios funcionais. Ou até mesmo pequenas mudanças na rotina, que os façam mais ativos. Pacientes com menores limitações, os exercícios de pilates, hidroginástica, funcional, musculação, yoga e outros, são sempre bem-vindos. Se praticados diariamente, melhor ainda, mesmo que intercalados ou associados de alguma forma.
Você se lembra que essa danada de fibromialgia prevalece nas mulheres na pós-menopausa? Então, quando aumentamos o nível de atividade física do paciente, automaticamente iremos contra as patologias mais catabólicas, causadas pela queda hormonal, como a perda da massa magra, da massa óssea e da cartilagem. Assim, combatemos os agravos da osteopenia/osteoporose, da sarcopenia e da osteoartrose. A meu ver, não existe outra forma. Mesmo os pacientes que fazem reposição hormonal irão necessitar dos benefícios mecânicos do exercício físico. Mobilidade, flexibilidade e força muscular são essenciais à manutenção das estruturas músculos-articulares.
O que mais ajuda?
Se iniciar uma rotina de exercícios físicos ajuda no controle da fibromialgia, ajustar a dieta do paciente, então, nem se fale. É de suma importância. Temos que lembrar daquela máxima que diz: “somos reflexo de como nos alimentamos”. Está claro, atualmente, que, alguns elementos da nossa dieta cotidiana são extremamente inflamatórios sistêmicos. Os mais famosos são o glúten, a lactose (para alguns), derivados da farinha branca processada, os ultraprocessados, o açúcar, grandes cargas de carboidratos, excesso de proteína de origem animal etc. A falta de fibras na dieta e baixa hidratação também devem ser evitadas. Mas deixo esse assunto (que é tão complexo quanto importante) a cargo do profissional de Nutrição. Temos de lembrar que, às vezes, algo é inflamatório para alguns, para outros nem tanto. E por tocar nesse tema, pacientes com dietas desajustadas e com sobrepeso/obesidade são considerados pacientes com quadro de inflamação sistêmica, uma vez que o excesso de tecido adiposo tem essa característica (infamação crônica de baixo grau). Dica: perca massa lipídica e ganhe massa magra muscular. Isso, por si só, tornará seu organismo menos catabólico e otimizado metabolicamente.
Realizar mudanças de caráter social, familiar, econômico e laborativo, obviamente, também faz parte do pacote. O estresse do trabalho, a correria com filhos, falta de tempo pra si mesmo e má qualidade de vida, irão agravar os sintomas. É muitas vezes nessa parte que entram os ansiolíticos, os antidepressivos e as medicações que melhoram o humor. Esse tema, cabe muito mais ao paciente interferir, do que ao próprio médico. Esse ponto é delicado, muito individualizado e complexo, eu admito.
Mudanças e acompanhamento próximo
Após as mudanças nestes fatores iniciais, que serão a nossa “base do bolo”, por assim dizer, iremos então dar seguimento e acompanhamento ao paciente. Gosto muito de ter um canal comunicativo direto com eles ou com seus familiares (WhatsApp, por exemplo). Isso torna o tratamento mais seguro e conseguimos tirar as dúvidas que surgem. Além disso, por lá, ajustamos as doses, verificamos efeitos colaterais e até mesmo possíveis urgências. E por se tratar de uma medicação que para muitos é considerada “off-label”, então, é importantíssimo o médico registrar todos os acontecimentos.
O tratamento da fibromialgia com a Cannabis medicinal
Agora vamos ao que realmente interessa, e provavelmente o motivo de muitos terem chegado até aqui: o tratamento e o medicamento da Cannabis medicinal, os diversos produtos disponíveis, as doses com que eu costumo trabalhar e o seguimento do paciente. Lembrando que não irei abordar nada sobre os medicamentos alopáticos (não seria esse o tema da coluna). E nem mesmo citar nomes de empresas farmacêuticas.
1. Qual produto devo utilizar para a fibromialgia?
Eu gosto muito dos óleos full spectrum, pelos seus mecanismos de efeito entourage (comitiva), trazendo benefícios dos canabinoides principais, dos terpenos e dos flavonoides. Em relação a esse últimos, lembre-se que os terpenos, por exemplo, têm grande importância dentro do extrato de Cannabis, e muitas vezes são ignorados. Exemplos são os terpenos limoneno (melhoram o humor), o pineno (melhoram a fadiga), o mirceno (a insônia) e por aí vai. Então, cabe ao médico olhar com cuidado o “COA” (certificado de análise do produto) e verificar quais destes elementos são mais ou menos abundantes. Produtos sem “COA” não são produtos confiáveis.
Trabalho, principalmente, com medicações que têm padrão de qualidade farmacológico, certificado de análise coeso. Em resumo: evito produtos muito rústicos, de origem duvidosa. A falta de informação de dosagens claras no rótulo, em miligramas, isso muitas vezes me incomoda. Saber a miligrama, em seu total no produto, dos seus canabinoides individualmente e ter informações de todo o espectro da planta é de extrema relevância. Não gosto quando o medicamento se apresenta apenas com valores em porcentagem (muito comum acontecer em produtos de associações).
Já os óleos broad spectrum eu reservo para aqueles que realmente não podem, não toleram ou são contraindicados o uso do THC, como, por exemplo, pacientes com quadro de depressão associado a ideias suicidas, pacientes descompensados psiquiatricamente, pacientes muito sensíveis ao THC, pacientes que passam por exames toxicológicos (militares, policiais) e outras patologias conflitantes. E, por último, porém não menos importante, temos as opções dos isolados, sendo mais comum o uso do CBD isolado. Para esta medicação, os beneficiados serão os atletas, que correm o risco de passar por exames antidoping. Portanto, na fibromialgia, na grande maioria dos casos, eu acabo lançando mão dos extratos full spectrum.
2. Proporções entre os fitocanabinoides da Cannabis
Todos nós sabemos, desde o início do manejo da Cannabis, a vantagem analgésica que possuem os produtos ricos em CBD + THC, em relação àqueles que são predominantemente ricos apenas no canabidiol (CBD). Um produto clássico para controle e manejo da dor seria o famoso 1:1 (CBD = THC em miligramas). Apesar disso, eu ainda gosto de trabalhar com óleos que tenham predominância de CBD, desde que a concentração de THC seja significativa, como por exemplo, os produtos 1:5 (THC/CBD) 1:10 (THC/CBD) ou 1:20 (THC/CBD). Todos trariam resultados positivos, mas a limitação do óleo 1:1 (THC/CBD), é que, quando o paciente é muito sensível ao THC (apresentando efeitos colaterais da maconha, logo no início do tratamento), teríamos então que abaixar a dose dos dois componentes juntos. Assim, perderíamos os benefícios do canabidiol, às custas do próprio THC.
Dito isso, eu prefiro mesmo os frascos de extratos com predominância de CBD. O canabididiol, nestes casos, serviria como modulador inflamatório. Além disso, funcionaria como um forte aliado ansiolítico, modulador do humor e do bem-estar (devido a sua inibição da enzima FAA e aumento da secreção endógena da anandamida). Isso sem falar dos seus benefícios no sistema imunológicos, à sua ação “promíscua”, em diversos receptores, dentre outras funções regulatórias. Portanto, os produtos com apresentações entre 1500mg a 6000mg de CBD e com 150mg, 200mg, 300mg ou mais de THC em todo o frasco (frascos de 30ml), seriam exemplos de produtos com que eu gosto de trabalhar. Os produtos com quantidades menores de THC eu reservo para tratar patologias não dolorosas ou pacientes que possuem contraindicações ao uso do THC (assunto para outro artigo).
3. Doses na fibromialgia
Em relação às doses, costumo iniciar com 2,5mg de THC em uma ou duas tomadas, enquanto o CBD eu administro entre 15mg e 25mg inicialmente. Quando o óleo é administrado em dose única, essa dose seria noturna, pela segurança do paciente estar já em ambiente controlado, dentro de casa, e perto da hora de dormir (pensando nos efeitos do THC). Dependendo da condição econômica do paciente, podemos ter um frasco predominantemente rico em CBD e outro em THC. Isso nos dá a oportunidade de realizarmos um controle fino de dosagem deste último componente, mas também tornaria o tratamento mais oneroso. Como exemplo, se iniciarmos com um produto único, 1:10 (THC/CBD), estaríamos iniciando então com 2,5mg de THC e consequentemente 25mg de CBD, o que considero uma dose inicial bastante plausível.
Após aproximadamente 5-7 dias, gosto de fazer incrementos de 2,5mg de THC, seja noturno apenas (paciente mais sensíveis, frágeis ou poli medicados) ou até mesmo de 12/12 horas (meia vida estimada dos extratos oleosos). Pela minha experiência, até o total de 7,5mg ao dia de THC, os efeitos adversos deste ainda são brandos. Agora, após passarmos desta dosagem, chegando entre 7,5mg (THC) até 15mg (THC) eu considero um “sinal amarelo” (onde o paciente poderá ou não apresentar colaterais importantes).
A orientação de aumento progressivo das doses de Cannabis medicinal já está bastante difundida na comunidade médica
E, por último, após passarmos de 15mg de THC ao dia (soma das doses diárias), chegamos então em um sinal de alerta, onde teríamos de acompanhar bem de perto o paciente. Segundo alguns “papers” – e experiencia clínica de colegas renomados -, até a concentração de 30mg de THC ao dia teríamos segurança clínica considerável.
Em relação ao CBD, as doses poderiam ultrapassar 100mg ao dia, sem grandes repercussões. Comumente, observo melhora dos sintomas quando os pacientes estão em 40mg ao dia de CBD, enquanto em outros, eu só vejo alguma resposta quando estão pertos dos 100mg/dia. A orientação de aumento progressivo das doses de Cannabis medicinal já está bastante difundida na comunidade médica. E é importantíssima, para termos a oportunidade de observar melhoras dos sintomas, gradativamente. E, além disso, para não experimentar grandes efeitos adversos relacionados ao medicamento. Isso faz com que saibamos a quantidade mínima terapêutica do paciente e torna o tratamento, inclusive, menos oneroso (usamos menos medicação, no geral). Além do mais, o famoso gráfico em curva em “u invertido”, da progressão dos sintomas, está aí, para nos alertar da problemática que tangencia grandes aumentos abruptos de dosagem.
4. Retorno e acompanhamento dos pacientes
Quando o paciente de fibromialgia inicia um tratamento com Cannabis, costumo indicar retornos com frequência média de 90 dias. Então, nesse retorno, reavalio todo o quadro geral, mensuro os benefícios alcançados e analiso novos exames atualizados. Quando necessário, troco a medicação. Importante é ter um leque de opções, com diferentes concentrações entre os canabinoides. Só assim o médico pode deixar o tratamento bastante individualizado, em cada fase deste.
Relato pessoal da minha vivência e experiência clínica com Cannabis e fibromialgia
Bom pessoal. Em primeiro lugar, agradeço a todos que me aturaram até aqui. Gostaria de lembrar que erra coluna não tem qualquer atrito de interesses, tem caráter apenas informativo e não científico. Nem mesmo tenta sequer criar algum tipo de protocolo de uso de qualquer tipo de medicação. Esse post é apenas um relato pessoal da minha vivência e experiência clínica. Além disso, é uma reflexão sobre os bons resultados que tenho obtido na minha prática médica, para incentivar aos colegas que passem a olhar com mais atenção essa nova arma terapêutica.
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