Mesmo sem autorização da Anvisa, farmácias de manipulação conquistam na justiça o direito de manipular molécula da Cannabis
Mais de 50 decisões judiciais autorizam as farmácias de manipulação a ministrar o canabidiol (CBD), uma das moléculas presentes na Cannabis. O número da Associação Nacional dos Farmacêuticos Magistrais (Anfarmag) demonstra que já existe uma jurisprudência favorável ao setor, e que a judicialização de processos para requerer o direito de fazer parte do mercado medicinal da Cannabis no Brasil segue num gráfico crescente. De acordo com o diretor executivo da Anfarmag, Marco Fiaschetti, estudos em diversos países do mundo vêm demostrando – cada vez mais – a eficácia da terapia canábica no tratamento de uma série de desordens e doenças, assim como a necessidade da individualização dos medicamentos à base de canabinoides.
“Sabe-se que esse é o grande diferencial do segmento magistral. As farmácias de manipulação no Brasil são referência em desenvolver formulações personalizadas de qualquer tipo de medicamento. Doses feitas de acordo com a necessidade de cada paciente, que sejam fáceis de usar e com uso de tecnologia e inovação. Porém, temos um gargalo, que é o acesso a insumos da Cannabis, porque a cadeia fornecedora tem vedação de trazer esse tipo de insumo, nas suas mais diversas composições, quando é para a farmácia de manipulação. E isso, obviamente, prejudica a sociedade”, explica Fiaschetti.
Desde a publicação da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 327/2019 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – que vedou às farmácias de manipulação de participarem desse mercado – as associações das farmácias magistrais têm se mobilizado para obter o direito de fornecer produtos personalizados à base de Cannabis tanto na Anvisa, assim como no Congresso Nacional. A RDC 327 define as condições e procedimentos para a concessão da Autorização Sanitária para a fabricação e a importação, assim como estabelece os requisitos para a comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização de produtos de Cannabis para fins medicinais. “Houve uma iniciativa parlamentar em propor um Projeto de Lei (PL 399/15) sobre o uso de produtos à base de Cannabis. Devido ao trabalho institucional da Anfarmag junto ao Poder Legislativo, este PL, contempla a manipulação e tudo que as farmácias magistrais acreditam que a legislação deveria permitir acerca da normativa. Precisamos apenas destacar que a existência de um Projeto de Lei é uma coisa; já este ir para plenário ser votado e aprovado nas duas Casas para ter a chancela do Executivo é outra. Então, continuamos o trabalho para que haja tramitação desse Projeto de Lei”, afirma o Diretor Executivo da Anfarmag.
Não há justificativa técnica
Para o presidente da Ação Magistral, Paulo Miguel Lemos Vasques, as liminares estão sendo concedidas porque não há justificativa técnica que impeça a atuação das farmácias de manipulação no mercado da Cannabis, uma vez que as magistrais já possuem autorização para manipular qualquer medicamento com registro na indústria, sejam eles controlados ou de efeito psicotrópico. “É preciso ter uma justificativa técnica para liberar um único segmento para atuar com a Cannabis. A indústria farmacêutica tem um viés muito forte. Não tem justifica plausível para ser proibida a manipulação de canabinoides. Por que não pode? O juiz Milton Biagioni Furquim, de Minas Gerais, usou este argumento para deferir o pedido de uma farmácia em Guaxupé (MG). No seu voto sustentou que as farmácias de manipulação podem realizar todas as atividades que as drogarias – sem manipulação – exercem, podendo realizar o comércio e dispensação de produtos e medicamentos industrializados e manipulados, sendo autorizado ainda manipular fórmulas magistrais e oficinais”, pontua Vasques.
De acordo com o farmacêutico, as farmácias de manipulação já possuem estrutura e competência para manipular medicamentos à base de Cannabis, além de profissionais qualificados para ministrar qualquer tipo de formulação, porque já trabalham com outras substâncias derivadas de plantas medicinais. Mas a professora do curso de Farmácia da Universidade Presbiteriana Mackenzie e coordenadora do Comitê de Cannabis do Conselho Regional de Farmácia de SP, Margarete Akemi Kishi, analisa de forma diferente. Para a docente, apesar de a iniciativa de judicializações ser positiva para o segmento, há sempre o outro lado da moeda. “A empresa ganha a liminar, mas o setor está preparado realmente? Tem farmacotécnica? Hoje existe um único fornecedor, e quando tiver mais? As empresas vão saber entender o cenário da Cannabis? Vão entender o tipo de produto que chega? Como trabalhar essas moléculas? E os médicos sabem prescrever para formulação magistral”, questiona Kishi. Apesar de reconhecer que ministrar CBD é menos complexo do que manipular estrógeno, hormônios e opioides, por exemplo, a farmacêutica acredita que antes de avançar, o setor precisa antes se capacitar. “Legalmente, as farmácias estão protegidas por uma liminar. Mas, a priori, elas só podem manipular CBD e só tem um fornecedor. Não vejo como avançar com essas limitações. Hoje, o mercado já tem oferecido outras opções de formulação com diversos canabinoides. Mas entendo que é preciso regulamentar a atuação magistral, certamente”, completa Kishi.
Setor em expansão
Dados do Panorama Setorial Anfarmag 2020 revelam que o setor de farmácias de manipulação no Brasil registrou R$ 6,96 bilhões de faturamento naquele ano e obteve margem de crescimento de 5,8%, contra uma evolução do Produto Interno Bruto (PIB) de 2,2% no mesmo período, segundo dados do IBGE. Essa expansão do setor magistral busca caminhar lado a lado com as oportunidades do mercado canábico, outro setor em alta no Brasil. “O mercado de produtos individualizados ainda não tem a dimensão exata de seu tamanho (mercado da Cannabis) porque o setor só vai preparar medicamentos mediante prescrição de profissionais habilitados. Porém, observamos que a importação de produtos autorizados pela Anvisa é crescente, o que significa que há uma forte demanda no país para tratar pacientes. As Associações que trabalham com pacientes, que necessitam de acesso à Cannabis, são cada vez mais numerosas e organizadas no Brasil. Entendemos que parte da sociedade não tem tido acesso a este tipo de produto, principalmente a parte mais carente. Por isso, vemos essa situação como algo preocupante. Por meio da individualização, é possível tratar as mais variadas doenças, com a dosagem e as substâncias corretas, pensando na cura e no bem-estar de cada paciente”, detalha o diretor executivo da Anfarmag.
Na avaliação do presidente da Ação Magistral, Paulo Miguel Lemos Vasques, o mercado da Cannabis ainda é um campo a ser explorado. “Entendo que mais ou menos dia o entendimento da Avisa sobre esse assunto irá mudar. São muitas liminares em jogo. Pelo o que sabemos, a Anvisa não tem cassado essas liminares. Se já existe um produto industrializado, por que não podemos ministrar essas substâncias? Hoje, não fazemos a importação direta da matéria-prima da Cannabis. O que as liminares buscam é a possibilidade de manipular o produto. Não é a importação. Queremos manipular todas as moléculas disponíveis da Cannabis que tenham função medicamentosa e comprovação científica. O que a farmácia magistral faz é validar o processo, não trabalha com o produto final. Nossa grande vantagem é a personalização. Mas hoje, a matéria-prima da Cannabis ainda é muito onerosa, e se torna inviável por uma questão financeira. Não sei se aqueles que conseguiram liminar já estão ministrando essas substâncias por causa do custo. De qualquer forma, a farmácia magistral quer ter os mesmos direitos da indústria”, argumenta Vasques.
Casos compassivos e dermatológicos
Segundo a farmacêutica herbalista, Adriana Russowsky, alguns médicos já estão prescrevendo a Cannabis manipulada em casos compassivos e dermatológicos. “As evidências científicas avançam com rapidez e a regulamentação não consegue acompanhar o ritmo. Assim como crescem as formas de acesso, aumenta o embasamento científico para mais judicializações. O mercado magistral já está girando e ministrando a Cannabis. Mas, claro, nem todas as farmácias com liminar estão atuando no setor ainda”. Adriana, que dá consultorias no mercado da Cannabis há quatro anos, explica que assim como a formulação magistral é personalizada, a terapia canábica também. “A medicina personalizada, preventiva e ortomolecular observa cada organismo de forma única. O Sistema Endocanabinoide responde de forma diferente aos tratamentos à base de Cannabis porque também é individualizado. Por isso, a atuação magistral tem tudo a ver com essa planta. São formulações específicas para indivíduos únicos. No setor magistral conseguimos fazer a dose ideal para que o paciente se trate sem gastar tanto. Hoje, as farmácias de manipulação já conseguem entregar medicamentos mais baratos do que as farmácias tradicionais. Novos fornecedores estão chegando. O mercado está se abrindo. E a atuação magistral já é realidade, mas precisa ser ampliada e regulamentada”, constata Adriana Russowsky.
Até o final do ano a Anvisa deverá divulgar uma atualização da RDC 327 e a expectativa é de que haja avanços. “Acreditamos que novos pareceres irão surgir. Hoje, não existe nenhuma regulamentação para dispensação de cosméticos com Cannabis no Brasil, mesmo sem canabinoides. Falta regular o uso veterinário também. Já sabemos da atuação de outros canabinoides como o CBG (canabigerol), CBN (canabinol)e o CBC (canabicromeno). Não podemos ficar limitados ao THC e CBD apenas. Precisamos de atualização”, defende Adriana. A professora Margarete Kishi concorda e também tem esperanças de que o setor magistral possa ser contemplado dessa vez. “A Anvisa provavelmente vai olhar para o setor. Se não mudar o entendimento, a busca por liminares vai continuar. E a judicialização tem um custo. Alguém, na outra ponta, sempre deixa de receber quando se judicializa uma ação. E qual é o preço que a saúde terá de pagar”, indaga Margarete Kishi.