O contrato da Secretaria de Saúde do DF com a Prati Donaduzzi ultrapassa R$ 850 mil reais. É como se o tratamento à base de Cannabis custasse à capital do Brasil R$ 50 mil reais por paciente.
Muita gente não sabe, mas uma lei do Distrito Federal garante aos pacientes que sofrem com epilepsia refratária o fornecimento de canabidiol (CBD) – molécula presente na Cannabis – de forma gratuita por meio das Farmácias de Alto Custo, através da Secretaria de Saúde do DF.
A Lei 5.625/2016, de autoria do pastor evangélico – o deputado distrital Rodrigo Delmasso (Rep/DF) – altera a legislação anterior (Lei 4.202/2008) que instituiu o Programa de Prevenção à Epilepsia e Assistência Integral às pessoas com Epilepsia no Distrito Federal. A redação, sancionada seis anos atrás, inclui o canabidiol na lista de medicamentos distribuídos gratuitamente pela rede pública de saúde do DF de forma pioneira.
Além do CBD, o programa também fornece remédios como Levetiracetan, Etossuximida, Gabapentina, Lamotrigina, Vigabatrina, Topiramato, Propofol, Tilpental, Midazolan, Depakon e Locosamida. A inclusão de medicamentos à base de Cannabis em programas de saúde pública como este é um grande avanço. Entretanto, a quantidade de pacientes atendida e o custo para fornecimento do canabidiol chamam a atenção.
Por meio da Lei de Acesso à Informação Pública (LAI) a reportagem conseguiu descobrir, de forma inédita, que apenas 17 pessoas com epilepsia recebem CBD em todo Distrito Federal. O valor total do contrato vigente é de R$ 853.039,01.
Atendendo ao pedido da reportagem, a Secretaria de Saúde do DF (SESDF) informou que a farmacêutica Prati Donaduzzi venceu a licitação para fornecer o produto à base de canabidiol na solução oral de 200 mg/ml, no frasco de 30 ml. A publicação da Ata de Registro de Preço (ARP), no Diário Oficial do Distrito Federal (DODF), ocorreu no dia 01 de outubro de 2021 e segue em vigência até 30 de setembro de 2022.
De acordo com a SESDF, o valor do contrato poderá ser executado integralmente ou não, a depender das demandas. A Gerência de Programação de Medicamentos e Insumos para Laboratório informou também que até abril desse ano havia sido executado um único Pedido de Aquisição de Material (PAM) relativo à 106 unidades – quantidade informada que seria suficiente para 2 meses – a um custo de R$ 196.143,46.
Cada unidade do medicamento saiu por pouco mais de R$ 1.850. O valor praticado pela farmacêutica que venceu a licitação é quase três vezes maior do que o preço do miligrama do CBD importando, segundo a Dra. Marianna Laíze dos Santos, médica com Pós-Graduação em Cannabis Medicinal. “Os produtos importados custam, em média, R$ 700 reais o frasco de 30ml com 5000mg de CBD. Fazendo as contas, o miligrama de CBD da Prati, na formulação de 200mg/ml, custa cerca de 0,40 centavos. Já o importado custa 0,15 centavos o miligrama de CBD”, detalha a médica.
Além do alto custo do medicamento adquirido pelo governo do DF, a especialista ainda alerta para um agravante: “O canabidiol da Prati é isolado, ou seja, não possui os demais fitocanabinoides da planta que atuam no chamado efeito comitiva. Com a formulação isolada, o paciente precisa usar uma quantidade ainda maior de medicação. Hoje, uma série de estudos comprovam que a atuação conjunta de todos os canabinoides é mais eficiente do que a molécula isolada”, explica a especialista.
No Brasil, a estimativa é de que 3 milhões de pessoas sofram com epilepsia. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que pelo menos 1,5% da população mundial foi diagnosticada com a patologia. O percentual corresponde a cerca de 50 milhões epilépticos em todo planeta. Segundo a Dra. Marianna, o canabidiol é um dos fitocanabinoides presentes na Cannabis que vem sendo usado de forma científica e exitosa no controle de convulsões, mas também tem aplicação em diversas patologias como Alzheimer, Parkinson, autismo e demência, por exemplo. Por isso, a lei no DF não deveria estar limitada à essa patologia apenas, defende a médica.
Além de estar restrita aos casos de epilepsia, para ter acesso ao medicamento à base de Cannabis via Secretaria de Saúde do DF, os pacientes precisam comprovar o diagnóstico e apresentar exames de imagem como tomografia computadorizada de crânio e ressonância magnética do encéfalo, assim como exames neurofisiológicos e exames laboratoriais (pesquisa de líquor, analise molecular e exames de bioquímica genética).
Tantas exigências limitam e dificultam o acesso, como explica Paula Érika Paz Neves, diretora de relações públicas do Movimento Orgulho Autista do Brasil (MOAB). “É difícil marcar uma consulta com um neuropediatra da rede pública. Conseguir um prescritor da Cannabis é outro desafio. E ainda cumprir a agenda de todos os exames… a maioria não consegue”, relata a mãe atípica do Daniel.
Paula Neves defende o uso medicinal da planta e conta que desde que o filho autista começou a usar o canabidiol que a concentração, o sono e a agressividade do menino melhoraram consideravelmente. “O paciente tem urgência em tomar o medicamento. Não pode enfrentar burocracia. Ficar refém de importação ou comprar na farmácia por um preço absurdo”.
Segundo Neves, o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) atinge de 1% a 2% da população mundial e, no Brasil, aproximadamente dois milhões de pessoas. “Fizemos pressão e agora o Censo vai levantar esse dado. O que temos são estimativas. É importante conhecer os dados para que essas crianças possam ser incluídas em políticas públicas como essa”, defende.
Para a diretora de relações públicas do MOAB, não faz sentido criar uma lei de acesso ao canabidiol restrita à uma única patologia, já que as propriedades medicinais da planta atendem a uma série de doenças. “Se o governo regulamentasse a distribuição desse medicamento de forma sistemática e nacional, seria possível comprar e distribuir com um preço bem mais justo. Hoje, existe esse monopólio da indústria farmacêutica e o governo fica refém de um único produto que onera os cofres públicos. Se uma política pública fosse bem estruturada poderia atender a milhares de pessoas e não apenas 17”, conclui a ativista.