Na noite desta segunda-feira, 25, a Associação Brasileira de Psiquiatria publicou o que chamou de “Posicionamento oficial da Associação Brasileira de Psiquiatria relativo ao uso da cannabis em tratamentos psiquiátricos”. A ABP apresentou-se como extremamente contrária ao uso da Cannabis no tratamento de doenças mentais, ignorou publicações científicas contemporâneas, confundiu o THC com CBD e chamou de ‘publicidade’ o que ‘alguns veículos midiáticos brasileiros fazem ao noticiar benefícios da Cannabis’.
A Dra. Janaína Barboza, com quem conversamos rapidamente sobre o assunto, chamou o documento de “uma questão política”. “Não foi uma questão educacional, não foi uma questão científica”, afirmou.
E com o objetivo de esclarecer os pontos do documento, entrevistamos a médica psiquiatra que é uma das pioneiras no estudo da medicina canabinoide no Brasil: Dra. Ana Gabriela Hounie.
Comprovações científicas dos benefícios da Cannabis
“Têm muitos estudos científicos comprovando a eficácia e a segurança da Cannabis Medicinal. Além disso, eles falam de uma maneira que misturam o que se sabe sobre a Cannabis recreativa. Ou seja a maconha de rua, com THC. E o uso de produtos que contém menores quantidades de THC e que já se mostraram seguros em vários estudos”, explica a Dra. Hounie.
Aqui ela expõe o que pode-se chamar de uma “falta de atualização” sobre o primeiro ponto do documento que afirma que “não há evidências científicas suficientes que justifiquem o uso de nenhum dos derivados da cannabis no tratamento de doenças mentais”.
Padrões de pesquisa com CBD
“As pesquisas sobre o CBD devem continuar, mas os estudos sobre os efeitos colaterais e a probabilidade de dependência também devem ser realizados e intensificados”. Este é o único ponto do documento que a Dra. Hounie concordou em sua totalidade.
Esquizofrenia, THC e CBD
Já no segundo ponto do documento encontra-se a afirmação de que o “uso e abuso das substâncias psicoativas presentes na Cannabis causam dependência química, podem desencadear quadros psiquiátricos e, ainda, piorar os sintomas de doenças mentais já diagnosticadas. Esse é o caso da esquizofrenia”.
“Não é a minha opinião, é com base científica. Temos evidências que os casos de esquizofrenia que as pessoas que têm uma exposição genética para esquizofrenia podem desencadear os primeiros surtos após o uso precoce e pesado de maconha. Isto já está comprovado cientificamente, Acontece que isso se refere quando a gente fala de THC. Mas quando a gente fala de Cannabis Medicinal, falamos de produtos com mais CBD, Canabidiol, do que THC. O CBD tem ação antipsicótica, que protege contra estes efeitos do THC, que em geral é usado em baixas doses. A gente não recomenda que crianças e adolescentes usem THC”.
Dependência química da nicotina e comparação com cigarro
“Na época do cigarro se promoveu o uso como uma coisa segura. Inclusive os artistas de cinema, né? Eles estavam sempre fumando e isso acabou levando uma legião à dependência dele. Mas acontece que a nicotina é muito mais viciante do que a maconha, o THC, né? De todos os estudos que mostram o poder de gerar dependência das substâncias, coloca a maconha lá para o sexto lugar. Antes vem a nicotina, cocaína, álcool, crack… existem vários outros que são muito mais agressivos”, destaca Dra. Hounie. Aqui ela explica sobre a comparação com o cigarro que o ponto 4 do documento realiza: “Essa “publicidade” positiva remete à época em que os cigarros eram comercializados com chancela da mídia e até mesmo de parte da comunidade médica para atender interesses financeiros”.
CFM, epilepsia e a falta de olhar para outras patologias que podem ser tratadas com Cannabis
Já no quinto ponto do documento salienta-se que, na teoria, aqui no país o CFM autoriza o uso compassivo do CBD “apenas para crianças e adolescentes com epilepsia de difícil tratamento, por meio da Resolução nº 2.113 de 2014”. A Dra. Hounie explica que esta resolução deve ser revista em breve, já que carece de “bom senso” e de “ciência”:
“O Conselho Federal de Medicina se limitou a autorizar o uso compassivo do Canabidiol puro sem THC para epilepsia refratária do tipo Síndrome de Dravet até os 18 anos de idade. Como se por mágica a pessoa chega aos 18 e não precisasse mais usar o tratamento.
É uma restrição que não tem base nem na ciência e nem no bom senso. Além disso, o CFM lançou recentemente uma consulta pública para rever esta resolução. Estamos opinando e esperamos que seja atualizada”.
Citação da APA de 2019 e progresso da ciência
Sobre o ponto seis “Assim como a ABP, a Associação Americana de Psiquiatria (em inglês, American Psychiatric Association – APA)6 não endossa o uso da cannabis para fins medicinais”, Dra. Hounie observa que:.
“Esta afirmação é de 2019, está atrasada e deve se atualizar. Temos estudos robustos, principalmente sobre o uso compassivo. Para cada doença, como depressão, esquizofrenia, toc, existe um percentual de pessoas que são refratários ao tratamento. Então quando a gente realiza o uso compassivo, é justamente nesses casos. Casos que tem evidência como: epilepsia, transtorno do estresse pós-traumâtico, Síndrome de Tourette. Só que o que eles estão chamando de evidência é somente metaanalise e estudo controlado duplo-cego com placebo. Mas temos que levar em conta que há vários tipos de evidências. Pode ter menos peso mas não tira o valor do acúmulo de evidências: experiência clínica de especialistas, relatos de caso, estudos de casos e abertos. São a partir destes estudos iniciais que se constroem estudos maiores. A ciência progride ao longo do tempo. E estamos caminhando neste processo”.
Riscos de dependência e importância de uma regulamentação
“O tratamento de qualquer doença deve ser realizado baseado em evidências científicas e os médicos que receitam o uso da cannabis para fins medicinais devem ter plena consciência dos riscos e responsabilidades inerentes à prescrição”. Neste ponto, o sete, a Dra. Hounie concorda. Porém observa que a prática deve ser realizada também com outras substâncias, como opioides ou benzodiazepínicos.
“São substâncias que causam dependência, são várias que causam dependência e que estão na nossa farmacopéia. São reguladas e têm suas receitas. E queremos que a Cannabis entre neste sistema. Em nenhum momento falamos que a Cannabis medicinal não é medicamento, não tem efeito colateral e pode ser usada de qualquer maneira. Ela tem indicações, contra-indicação, interação medicamentosa, como qualquer medicação. Como qualquer indicação, o acompanhamento é necessário para o tratamento com qualidade”.
Resposta de médicos especialistas em Cannabis Medicinal
Por fim, Dra. Hounie informou que a resposta já está disponível aqui e será aplicado à publicação nos mesmos moldes e espaços do documento da ABP. E atualmente está no site da Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide e nas redes sociais. A nota de esclarecimento é assinada por ela, por Flávio Rezende, Marcus Zanetti, Raquel Peruybe e Wilson Lessa S. Jr:
“Os comitês científicos da APMC foram surpreendidos e alarmados por artigo intitulado “Position
statement of the Brazilian Psychiatric Association on the use of cannabis in psychiatric treatment” assinado
por apenas dois autores (data da submissão: 17/07/2022) / data da aprovação: 19/07/2022). Trata-se de
um artigo de opinião publicado no periódico “Brazilian Journal of Psychiatry”, claramente enviesado por
posições ideológicas e não científicas, sem menção a trabalho dos comitês científicos da Associação
Brasileira de Psiquiatria (ABP) ou mesmo uma simples consulta pública aos associados da ABP, de modo
que parece refletir a posição de sua Diretoria e não representa um consenso da comunidade de psiquiatras
a ela associados”.
Confira a resposta da Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide na íntegra aqui.
Ainda assim, a psiquiatra lamenta o impacto que o documento da ABP pode alcançar.
“Infelizmente isto tem um grande impacto porque a ABP tem muitos Associados. A maioria dos psiquiatras estão associados e não têm conhecimento porque é um assunto novo. Algum médico mais aberto está bem informado e levando para os seus alunos o conhecimento. Mas a falta de conhecimento ainda faz com que o médico que receba esta nota de esclarecimento corrobore com todas aquelas ideias preconceituosas em relação à Cannabis”.