Desburocratização da Anvisa traz agilidade e segurança ao paciente
“No início, o processo era muito burocrático. A primeira vez que houve uma tentativa de importar junto à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de forma regular, legal, totalmente acompanhada e monitorada foram mais de 40 dias de espera. Isso, só para conseguir autorizar a importação. Hoje, a autorização é instantânea”.
O relator acima é do Norberto Fisher, que ficou conhecido em todo país como o pai da Anny, a garotinha que nasceu com uma síndrome rara que a vitimava com sucessivas convulsões. Ao lado da esposa, Katiele, a família protagonizou o filme “Ilegal” em 2014.
O documentário retrata a saga do casal para a importação de uma medicação que até então poderia ser enquadrada como tráfico de drogas ao cruzar as fronteiras do país – o canabidiol (CBD) – uma das propriedades medicinais da Cannabis.
Ao relembrar da burocracia para importar o único medicamento que impedia a filha de convulsionar, Fisher conta que entre 2013 e 2014, para que uma pessoa pudesse liberar a entrada do produto no país, ela tinha que antes ir à São Paulo cuidar do processo aduaneiro ou pagar um despachante.
“Quem diria, oito anos atrás, que estaríamos hoje debatendo, conversando, falando sobre o uso medicinal da Cannabis em todos os lugares. Nas famílias, nas universidades, nos órgãos públicos e na própria Anvisa, discutindo internamente para que possamos usar a maconha de forma medicinal. Isso seria inimaginável oito anos atrás. Imagina como estaremos daqui a dez anos”, profetiza Fisher.
Confira a entrevista completa com Norberto Fischer
De acordo com o gerente de produtos controlados da Anvisa, Thiago Silvério, a Cannabis para assuntos médicos está entre os assuntos prioritários da Agência Reguladora que atua para facilitar o acesso sem perder o controle da importação de produtos seguros para os pacientes no Brasil.
“A gente ainda vive num cenário em que há limitações no acesso, essa perspectiva também é considerada. O trabalho ainda considera a necessidade de permitir o acesso adequado e ágil. Priorizamos produtos em que se possa confiar”, explica Silvério.
Segundo o técnico, a Agência trabalha para, principalmente, trazer segurança ao paciente da Cannabis. “De forma abrangente, o marco regulatório da Cannabis está acontecendo a medida em que a regulamentação já existe e avança. Existe uma limitação legal (da Anvisa).
O decreto que regulamenta a convenção de entorpecentes é um grande limitador. A experiência internacional e da América Latina é de que o Congresso atue. As soluções principais são legislativas e a Agência, a partir daí, pode trabalhar nos espaços que tiver oportunidade para regulamentar e fiscalizar as demais questões”, afirma o gerente.
Boom de importações
Informação, quebra de preconceito e agilidade no processo de importação fizeram com que o uso da Cannabis para fins médicos no Brasil disparasse. Entre 2015 e 2021, a Agência Reguladora autorizou mais de 70 mil pedidos de pacientes. Para se ter uma ideia, enquanto em 2017 a Anvisa autorizou a importação de 2.101 solicitantes, em 2022 o número saltou para 32.416 liberações. Um quantitativo 15 vezes maior.
Apesar de todos os avanços, os pacientes esperam mais. A Sabrina Kaster, mãe da Natália, que possui a mesma Síndrome Genética da Anny – a CDKL5 – hoje atua como consultora canábica para ajudar outras famílias a terem acesso ao medicamento, que assim como a família da Anny, mudou a qualidade de vida de todos.
“Como muitas famílias têm dificuldade de acessar a plataforma e completar a autorização, eu me proponho a fazer esse serviço. Só que outro dia a Anvisa bloqueou o meu CPF para realizar novas autorizações mesmo com a procuração dos pacientes. Eu fiquei 23 dias sem poder acessar o sistema. Tem dias que a plataforma está fora do ar. Isso tudo angustia muito o paciente”, conta Sabrina.
Simplificação para importação
Norberto Fisher concorda. “Por mais que a Anvisa tenha simplificado e a gente tenha avançado, não é um conhecimento trivial fazer o cadastro no portal da Anvisa, abrir uma conta no egov, fazer o upload dos documentos.
Ainda hoje, fazer a solicitação para ter autorização é um processo muito burocrático. Esse é um gargalo que precisa ser solucionado. Esperamos que a Anvisa foque mais na fiscalização e flexibilize essa parte inicial de dar entrada na importação”, defende Fisher.
Atualmente, com uma receita simples e autorização da Anvisa é possível fazer a importação de medicamentos à base de maconha. Até 2019, além do receituário e do aval da Agência, os pacientes ainda precisavam de laudo médico.
“Lembro que no início, a Anvisa exigia o laudo de dois médicos diferentes para se certificar de que a prescrição não era forjada. No caso da minha filha, a primeira autorização demorou quase quatro meses para sair”, recorda Sabrina.
RDC 327
A Anvisa deixou de exigir o documento a partir da Resolução da Direção Colegiada (RDC) 327/2019, que liberou a venda dos canabinoides em farmácias também, entretanto a preços inacessíveis. O medicamento nas drogarias é vendido, em média, por R$2.300 mês. “Hoje o óleo importado é acessível, o que está nas farmácias não é. Do que adianta isso? Meu propósito agora é educar. Queremos pressionar para que o remédio chegue para todos a um preço justo e de forma mais rápida”, espera a ativista.
É importante ressaltar que a entrada do medicamento no Brasil é rigorosamente fiscalizada tanto pela Anvisa, assim como pela Receita Federal.
Demora para entrar no Brasil
“O remédio da minha filha já ficou retido sem explicações por duas vezes na aduaneira, tanto na época em que eu importava como pessoa física, tanto agora, que judicializamos a ação. Quando isso acontece, a gente fica para morrer. Ninguém saber repassar uma informação e muito menos dar uma expectativa de data para a liberação. Essa burocracia compromete o tratamento dos nossos filhos e coloca em risco todos os avanços que conquistamos”, explica Kaster.
Essa angústia de ter o direito de acesso à saúde cerceado por pura burocracia foi o que motivou mães atípicas de todo país a pressionar a Anvisa por uma regulamentação mais simplificada.
“Em menos de 3 meses de uso contínuo da Cannabis zerou as convulsões na minha filha. Antes, ela não nos reconhecia, vivia apática. Depois da Cannabis, ela se comunica, come bem, dorme bem. A Natália nunca mais precisou fazer uso de respirador e sugador. Todos os aspectos melhoram, inclusive a nossa qualidade de vida familiar. A minha filha não pode ficar sem o canabidiol. Do contrário, a Natália volta a ter 80 convulsões diárias, anotadas no papel. É cruel demais! As outras medicações não resolvem, no máximo podem dopar a criança para não convulsionar por um tempo. A gente que vive essa realidade não pode esperar”, relata a mãe.
Operação tartaruga da Receita Federal atrasa entrega de medicação
Quem depende de importação ainda fica sujeito a outras problemáticas que envolvem o desembaraço aduaneiro. Desde o fim do ano passado, os servidores do Fisco colocaram em prática a chamada operação padrão nos portos e aeroportos do país. De acordo com um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Comércio Internacional e Investimento (IBCI), o prazo médio para a liberação de produtos importados aumentou quatro vezes por causa da paralisação do Fisco. Subiu de 5 para 20 dias.
Outro estudo feito pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostra que 96% das 186 empresas pesquisadas foram impactadas pela greve dos servidores da Receita. Os problemas mais recorrentes dizem respeito ao tempo de desembaraço na aduaneira, demora na inspeção e checagem da documentação, atraso na liberação das entregas de importações e exportações, assim como cancelamento de contratos. A Receita Federal exige do governo a recomposição do orçamento da pasta e a regulamentação do bônus de eficiência.
De acordo com o Sindfisco, medicamentos e cargas vivas não estão sendo afetadas pela operação padrão. Mas relatos de pacientes da Cannabis revelam o contrário. Danielly Silveira, mãe de uma adolescente com Síndrome do Espectro Autista, afirma que o medicamento da filha demorou quase 50 dias para chegar.
“Quando olhávamos no código de rastreio, a informação é de que o produto estava retido para fiscalização. O remédio ficou parado por mais de 15 dias para liberação. Enquanto isso, a minha filha voltava a ter crises de autoagressão sem a medicação. A gente se sente impotente. É difícil demais”, desabafa Danielly.
É nesse sentido que Norberto Fisher defende melhorias no processo de desembaraço aduaneiro e maior flexibilização da Anvisa. “Não conseguimos entender o porquê de não permitirem pequenos estoques dos medicamentos no Brasil. Quem sabe um dia a Anvisa permita armazenar os produtos importados aqui para que posteriormente o medicamento seja enviado aos pacientes? Isso reduziria muito o tempo de espera e essa angústia das famílias que contam o dia e a hora para a chegado medicamento de uso contínuo”, conclui Fisher.