Erika Morais conta como a Cannabis a ajudou a superar dores neuropáticas, disautonomia e disfunções cognitivas causadas pela “Covid longa”
Tudo começou em maio de 2020, logo no início da pandemia. Erika Cerqueira Morais, hoje com 37 anos, pegou Covid-19 e foi derrubada pela doença. Apesar de não precisar ser hospitalizada — sua saturação de oxigênio se manteve normal durante todo o processo — sentia muita falta de ar, tonturas e dores no corpo. “Fiquei um mês de cama”, conta Morais, que atualmente é graduanda em farmácia e faz pós em saúde mental. “A partir daí minha vida virou do avesso.”
Era o início de uma peregrinação em busca de um diagnóstico que explicasse o que acontecia com seu corpo. Após o fim do processo viral, as dores foram piorando. “A sensação de gripe passou, mas a dor neuropática, que na época eu não sabia nem nomear, se perpetuou.”
É o que se convencionou chamar de “Covid longa”: um conjunto de sintomas que perduram por muito tempo em certos pacientes, geralmente envolvendo, além de fadiga dores e tosse, complicações neurológicas, como lapsos de memória e outros danos cognitivos.
Diagnosticada previamente com transtorno bipolar — condição que provoca mudanças de humor em ondas alternadas de euforia e depressão —, realizava seu tratamento sem muitas dificuldades, mantendo seu quadro totalmente controlado. No entanto, as dores pós-Covid se agravavam, e em outubro de 2020 teve um episódio inédito de raiva. “Eu sentia muita dor, era muito estressante”, conta. “Qualquer barulho me incomodava, e ficava cada vez pior.”
Foi ao psiquiatra e recebeu um diagnóstico que, na época, pareceu muito estranho: sua condição teria mudado de transtorno bipolar para transtorno de personalidade borderline. Diferentemente da bipolaridade, a doença é associado à hipersensibilidade, que pode levar a episódios de raiva intensa. “Eu falei: ‘Nossa, como nunca descobriram isso antes?’”
Como o tratamento era basicamente o mesmo, seguiu com os medicamentos. Enquanto isso, as dores continuavam cada vez mais agudas. As visitas ao pronto-socorro e hospitais eram frequentes — de acordo com Morais, sua dor era extrema, atingindo a nota máxima numa escala de 1 a 10.
Suas idas a prontos-socorros e hospitais eram cada vez mais desgastantes. “Fazia uma bateria de exames de 5 horas, para sair com receita de dipirona. Até que pararam de medicar a dor e passaram a me receitar ansiolíticos.”
Diagnósticos erráticos
Médicos e enfermeiros começaram a dizer que seu problema era de ansiedade por conta do trauma da Covid. “Mas a ansiedade vem da dor!”, afirma a estudante. “Eu estava muito deprimida, nervosa, porque a dor te deixa nesse estado. Você não se acostuma com a dor.”
Esses diagnósticos incertos e erráticos eram acompanhados muitas vezes de desconfiança por parte de médicos e enfermeiros. Insinuavam que ela estaria inventando. “Uma médica perguntou se eu não estava criando isso da minha cabeça, outro disse que eu não estava querendo me ajudar”
Em uma ocasião, um desses profissionais chegou a usar sua condição psiquiátrica para desqualificá-la. “O que você tem é um transtorno mental grave, e fica criando essas coisas na sua cabeça”, disse o médico. Indignada, chamou a psicóloga do hospital para fazer uma reclamação formal. Acabou recebida novamente com desrespeito: “Você acha que todo mundo neste hospital está errado e só você está certa? Não acha isso meio arrogante?”
Sua condição psicológica acabou se deteriorando. Além da dor e do preconceito, passou a experimentar lapsos cognitivos e de memória. Via-se olhando para o celular sem saber como o aparelho funcionava, ou, dentro de um ônibus, não sabia mais para onde estava indo.
“Apesar de ter um quadro psiquiátrico, nunca passei por algo assim. Minha memória começou a falhar.” Esses episódios causavam crises de pânico, e em uma consulta com sua psicóloga, desabafou. “Comecei a duvidar de mim mesmo, achava que tinha esquizofrenia.”
Tratamento alopático
Morais passou todo o ano de 2021 em busca de um diagnóstico certeiro e um tratamento. Não encontrou nenhum dos dois. Tomava 20 remédios por dia, e sua dor era amenizada apenas com grandes doses de morfina ou codeína, que causavam muito desconforto gástrico. “Eu dizia para o meu marido que ia tomar os medicamentos na cumbuca, como sucrilhos.”
No dia 4 de outubro de 2021, ao levantar da cama pela manhã, perdeu as forças na perna e caiu. Foi tomada pelo medo. No hospital, nenhuma novidade: após diversos exames e algumas intervenções, recebeu alta sem um diagnóstico. “O médico disse: ‘Eu tenho uma notícia boa e uma ruim. A boa é que você está bem, a ruim é que não sabemos o que você tem’.”
Sensível, o profissional conversou com Morais. “A gente sabe o padrão de comportamento de quem inventa alguma coisa para chamar atenção, eu sei que não é o seu caso.” Em seguida, iniciou uma série de questões aparentemente desconexas: você tem retenção urinária? Tonturas? Sente câimbra na barriga? Por mais estranho que fosse, Morais percebeu que sua resposta era “sim” para todas as perguntas. Foi aí que o diagnóstico de disautonomia foi proposto pela primeira vez.
A disautonomia é um transtorno provocado por alterações do sistema nervoso autônomo, interferindo em ações automáticas do organismo, sobre as quais o paciente não tem controle, como fluxo sanguíneo e batimentos cardíacos. Entre os sintomas mais comuns estão fraqueza e tontura, como experimentados por Morais.
Cannabis para “Covid longa”
As peças do quebra-cabeça começaram a se encaixar. As dores tinham origem neuropática, a fraqueza vinha da distonia, e até seu diagnóstico cambiante de bipolaridade para borderline se explicava pela via neurológica: a Covid-19 mexera com seu sistema nervoso, causando todos esses sintomas prolongados e até alterando sutilmente sua condição psiquiátrica.
Apesar de finalmente receber um diagnóstico, Morais precisava agora de um tratamento que lhe aliviasse as dores, ainda intensas, e não agredisse seu organismo. Foi quando conheceu um médico de família que perguntou: “Você conhece o canabidiol?”
Foi atrás, e, no dia 9 de dezembro de 2021, tomou a primeira gota do óleo. “No dia seguinte eu acordei sem dor”, lembra. O resultado foi tão rápido e eficaz que gerou dúvidas. “Não é possível, deve ser um efeito psicológico”, pensou Morais.
Nem morfina havia tirado sua dor, mas a Cannabis medicinal conseguiu equilibrar seu organismo de forma quase imediata. Aos poucos, foi ajustando a dose até se livrar de todos os sintomas que a covid longa provocou em seu corpo por mais de 1 ano e meio.
“A Covid destruiu minha vida. Perdi meu estágio, não conseguia segurar um copo, não era capaz de tomar banho sozinha”, recorda, mas também comemora: “A Cannabis literalmente salvou a minha vida!”
Além de acabar com a dor, as tonturas e a fraqueza, a Cannabis diminuiu sua ansiedade, melhorou seu sono e trouxe benefícios que Morais nem esperava, como diminuição de acnes, alívio nas dores menstruais e dores de cabeça — e sem nenhum efeito colateral, nem interferência em seus medicamentos psiquiátricos. “Tudo que você perguntar, melhorou. A única coisa que a Cannabis não me trouxe ainda foi dinheiro”, ri a estudante.
Vida nova
Agora, renovada, Morais se prepara para retomar sua vida profissional e terminar os estudos. A longa jornada em busca de um diagnóstico acabou trazendo algumas novas ideias: seu trabalho de conclusão de curso em saúde mental será dedicado ao estudo da violência psicológica na prática médica, como aquela que sofreu de médicos e enfermeiros que usaram sua condição psiquiátrica para desqualificá-la.
Ela leva como missão de vida contar sua história, para ajudar outras pessoas que passam pelo mesmo sofrimento. “Minha vida mudou completamente, sou muito agradecida por isso. Se minha história chegar a uma pessoa e eu puder ajudar, vou ficar muito feliz.”
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