Pesquisadora revisa a literatura cientifica para avaliar o que se sabe sobre a Cannabis para dor neuropática e porque ela funciona
Uma das indicações mais recorrentes de Cannabis medicinal é no tratamento da dor. Diversas pesquisas já indicaram que o tratamento canabinoide ajuda a reduzir o uso de medicamentos opioides, que carregam graves efeitos colaterais. Mas o que a ciência diz sobre o tratamento com a Cannabis em casos de dores neuropáticas?
Essa é a resposta que buscou a pesquisadora Eduarda Souza da Silva Izidoro, em artigo recém publicado na revista Inova Saúde, um periódico da Unesc (Universidade do Extremo Sul Catarinense – Criciúma).
Sobre a dor
A dor é uma sensação emocional e sensorial que é experimentada quando ocorre um dano tecidual. É reconhecida através da ativação de receptores sensoriais, que estão dispostos por todo organismo e são ativados fisiologicamente em consequência de algum trauma, iniciando com um estímulo em nociceptores (terminações nervosas livres) que levam impulsos nervosos até o corno dorsal da medula espinhal e transmitem até chegar ao córtex cerebral, onde é gerada a experiência subjetiva da dor, funcionando, em situação aguda, como um alerta para a proteção do organismo.
A dor crônica é definida como dor patológica, pois em situação normal, este sistema encontra-se em equilíbrio. A dor neuropática é o resultado de uma ativação anormal da via nociceptiva em consequência de alguma lesão ou disfunção localizada em qualquer ponto de uma via nervosa central ou periférica, por compressão ou destruição do nervo.
Os sintomas são difíceis de descrever, pois os pacientes não conseguem explicar com clareza o que sentem, geralmente usam analogias, queixam-se de dores espontâneas (que aparecem sem estímulo perceptível), “em queimação”, “em agulhada”, “ardência”, entre outras.
O tratamento para a dor
De acordo com o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas 2012, o tratamento medicamentoso de primeira escolha para as dores neuropáticas são os antidepressivos tricíclicos, seguido de associação com antiepiléticos e por último os opioides, sendo a morfina o fármaco mais representativo da classe, inserida apenas aos pacientes refratários aos tratamentos de primeira escolha.
Os medicamentos preconizados para a dor neuropática nem sempre atendem a expectativa do paciente, já que não tem a capacidade de reduzir significativamente ou eliminar a dor, tendo apenas um resultado transitório, o que dificulta a retomada das funções diárias, além de causarem dependência e efeitos colaterais importantes.
Estudos demonstram que os opioides atuam com maior eficácia nas dores inflamatórias que nas neuropáticas, uma das hipóteses é a significativa diminuição dos receptores opioides em lesões de nervos periféricos, o que não ocorre com os receptores canabinoides situados nestes nervos, podendo indicar vantagens terapêuticas dos canabinoides sobre a morfina em neuropatias.
A Cannabis no tratamento de dor neuropática
Ao longo dos anos vários estudos relatam o emprego da Cannabis sativa para o tratamento de diversas patologias. Seu uso medicinal já é permitido em alguns países e estados americanos para alívio dos sintomas da êmese relacionada ao tratamento do câncer, melhora do apetite em pacientes com AIDS, e síndrome de Tourette (síndrome que provoca movimentos involuntários).
Além disso, vêm aumentando o interesse clínico da Cannabis sativa e seus constituintes químicos para o tratamento do glaucoma, da ansiedade e de convulsões, para estimulação do apetite e para o tratamento da dor.
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A Cannabis sativa contém cerca de 400 substâncias químicas, sendo o D9-tetrahidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD), as substâncias que possuem maior relevância clínica e estão sendo estudadas na atualidade. O THC é também a principal substância psicoativa da planta, já o CBD não possui efeito psicoativo,
Diversas evidências clínicas e experimentais vêm evidenciando a participação do sistema endocanabinoide na modulação da dor. Neste contexto, investigações de novas classes farmacológicas para o tratamento da dor neuropática vêm aumentando.
Na última década, os efeitos analgésicos dos canabinoides têm sido amplamente estudados para o tratamento dessas dores. Além disso, os estudos têm demonstrado que os canabinoides sintéticos e os fitocanabinoides têm sido aplicados como adjuvantes no tratamento das dores crônicas, particularmente da dor neuropática e têm apresentado eficácia, com baixos riscos de efeitos adversos graves em curto prazo.
Em virtude do número de pacientes com dor neuropática, da refratariedade dos tratamentos disponíveis e do avanço dos estudos sobre a eficácia dos fitocanabinoides para dores neuropáticas, este trabalho como objetivo revisar e discutir a respeito da importância do sistema endocanabinoide na modulação de estímulos dolorosos e do emprego da Cannabis sativa (maconha) para o tratamento de dores crônicas e neuropática.
Ciências, Cannabis e dor neuropática
O sistema endocanabinoide está ativo tanto no sistema nervoso central quanto no sistema nervoso periférico, atuando na modulação espinhal, supraespinhal e periférica da dor. Os receptores CB1 encontram-se no sistema nervoso central e periférico, enquanto os receptores CB2 apresentam-se principalmente no sistema nervoso periférico, relacionando-se com o sistema imunológico, e em menor quantidade no central.
Participam deste sistema os ligantes endógenos, 2-araquidonil glicerol (2-AG) e anandamida, que atuam como neurotransmissores, ligando-se aos receptores CB1, que estão na membrana de neurônios pré-sinápticos, promovendo a modulação da liberação de outros neurotransmissores como o glutamato e o ácido gamaaminobutírico (GABA); e em receptores CB2, nas células do sistema imune, o que pode justificar, pelo menos em parte, os efeitos sobre dor e inflamação.
A ativação dos receptores CB1, dependendo da região no cérebro onde estão expressos, irão gerar efeitos fisiológicos diferentes, como regulação da temperatura corporal, do apetite, alívio da dor crônica e modulação de processos cognitivos.
Os canabinoides, tanto os endógenos quanto os presentes na Cannabis sativa, ligam-se por afinidade aos receptores CB1 e CB2, ambos associados à proteína Gi/o, produzindo a inibição da síntese de AMPc intracelular, podendo ativar a fosfolipase A2 pela via das MAPKs, por conseguinte ocorre a ativação da síntese do ácido araquidônico, que é precursor de prostaglandinas e leucotrienos.
Os receptores CB1 quando ativados atuam também bloqueando canais de cálcio voltagem-dependentes e aumentando o fluxo de potássio e a sua concentração intracelular, favorecendo a hiperpolarização, além disso, o bloqueio dos canais de cálcio pode diminuir exocitose de glutamato e substância P, neurotransmissores envolvidos na dor.
Esses mecanismos sugerem que os canabinoides têm a capacidade de suprimir a transmissão nociceptiva, mediada pelo sistema canabinoide. Esta supressão também se estende às fibras responsáveis pela transmissão periférica, pelo bloqueio da transmissão no corno dorsal da medula espinhal e na substância cinzenta periaquedutal, tanto no sentido ascendente, quanto no descendente.
Em vários modelos animais, também pode ser identificada a supressão da proteína Fos, que é um gene de ativação imediata, usado como marcador neural de nocicepção, o que pode confirmar a ação analgésica dos canabinoides na dor neuropática.
Um estudo laboratorial em ratos usando um modelo de dor induzida por queimadura que a administração de um antagonista do receptor CB1 por via intratecal e intraperitoneal impede ou inibe o desenvolvimento de comportamento nociceptivo, relatando que compostos canabinoides possuem eficácia na dor.
Além disso, uma meta-análise publicada em 2015, que incluiu 5 estudos avaliando os benefícios da inalação da Cannabis sativa em dor neuropática crônica, concluiu que os participantes do estudo tiveram uma melhora de 30% na pontuação da dor, utilizando a escala analógica visual como referência.
Após a terapia, os estudos também constataram que a analgesia foi dose-dependente, sendo que quanto maior o teor de THC, mais acentuado foi o alívio da dor, o que reforça a possibilidade do emprego da Cannabis sativa como um analgésico eficaz no alívio da dor neuropática crônica e sugere um importante papel deste constituinte canabinoide no mecanismo da analgesia.
Uma revisão sistemática contendo a análise de 23 estudos randomizados e controlados e 8 estudos observacionais investigaram os efeitos adversos produzidos pela administração de Cannabis sativa para diversas indicações terapêuticas demonstraram que a maioria dos efeitos adversos, em comparação com o controle, não foram significativos, sugerindo que o uso da Cannabis sativa a curto prazo, tem um perfil de segurança aceitável.
Outra revisão sistemática avaliou a dor crônica incluindo 28 estudos, avaliando diversas formas de uso dos canabinoides exógenos e fitocanabinoides para tratamento da dor, inclusive a neuropática. Estes estudos sugeriram melhorias nas medidas de dor associadas com canabinoides.
O número de pacientes que relataram alívio da dor foi significativamente superior com o uso de canabinoides do que com placebo. Além disso, houve qualidade moderada de evidência para sugerir que os canabinoides podem ser benéficos para o tratamento de dores crônicas e neuropática.
No entanto, apesar de muitos estudos estarem demonstrando a eficácia da Cannabis sativa sobre a dor neuropática, a utilização destes canabinoides como analgésicos não é amplamente difundida, em parte devido ao efeito psicotrópico apresentado por eles e dos aspectos culturais e religiosos acerca da planta. Mais estudos são necessários para esclarecer os mecanismos exatos pelos quais os constituintes da Cannabis sativa apresentam alívio da dor, além de sua segurança.
Conclusão
A dor ainda continua sendo um problema de saúde pública, pois existem numerosas intervenções disponíveis para o tratamento, porém muitos pacientes se tornam refratários a estas terapias e permanecem sem alívio da dor.
Estudos têm demonstrado que o uso dos agentes canabinoides no tratamento de dor crônica possui eficácia, com poucos efeitos indesejáveis, criando a perspectiva de que os fármacos que atuam no sistema canabinoide possam vir a ser utilizados para o tratamento da dor, inclusive a de origem neuropática, melhorando a qualidade de vida dos pacientes. Porém, mais estudos são necessários para assegurar a eficácia desses compostos, bem como a segurança nos tratamentos de longo prazo.