Reviravolta no setor de Cannabis medicinal no Brasil. Após conceder uma patente de 20 anos para uma faixa de 20 a 250 mg/mL de canabidiol diluído em óleo de milho para a farmacêutica paranaense Prati-Donaduzzi, um parecer técnico do Instituto Nacional da Propriedade Intelectual solicitou, no dia 31 de março, a anulação da patente. Conforme o documento obtido pelo portal Cannabis & Saúde, o INPI analisou três pedidos de nulidade e concluiu que o produto “não pode ser considerado atividade inventiva”. O parecer agora precisa ser aprovado pela direção do órgão.
“É um entendimento deste colegiado que apenas alterar a concentração de CBD e acrescentar excipientes, como antioxidantes, adoçante, aromatizante e conservante, de modo a prover uma composição oral líquida de CBD (…) é uma modificação trivial que está dentro das habilidades ordinárias de um técnico no assunto na área de tecnologia farmacêutica. Assim, a solução proposta pela titular da patente em lide não pode ser considerada como envolvendo uma atividade inventiva na falta de uma vantagem técnica derivada de tal faixa de concentração e uso de tais excipientes frente ao estado da técnica mais próximo.”
A história foi revelada em fevereiro com exclusividade pelo C&S. Na reportagem, foram listadas diversas falhas na concessão. A carta patente INPI BR 112018005423-2 concedeu à Prati-Donaduzzi a “invenção” de “uma composição farmacêutica oral de canabidiol e excipientes” “útil no tratamento de distúrbios neurológicos, em especial a epilepsia refratária”.
Contudo, estudos publicados muito antes de 2015, ano do depósito da patente, já demonstravam publicamente o que a farmacêutica reivindicou como invenção sua.
Muitas dessas falhas foram citadas pelos pedidos de nulidade. Os recursos foram protocolados pelo deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) em conjunto com Antônio Luiz Marchioni, o falecido Padre Ticão; o laboratório botânico Herbarium; e pela advogada especializada em Direito da Propriedade Intelectual, Letícia Provedel da Cunha.
Estudo de 1993 já antecipava composição
Entre as argumentações de Paulo Teixeira e Padre Ticão, estão a de que utilizar um vetor gorduroso para formular algo isoladamente não é novidade ou atividade inventiva. É o que na ciência se chama de estado da arte. Os dois citam um estudo de 1993 publicado pelo Dr. Antonio Waldo Zuardi (Effects of ipsapirone and cannabidiol on human experimental anxiety. Jornal of Psychopharmacology, 7, p.82-88,), que tem como autores dois dos inventores da patente, um deles o próprio Dr. Zuardi. O recurso lembra que o estudo já antecipava, quase 30 anos atrás, uma composição líquida compreendendo CBD e óleo de milho. O estudo mostra também que a faixa de concentração reivindicada pelo pedido já havia sido estudada em modelos de epilepsia.
Quanto ao uso do canabidiol para o tratamento de epilepsia refratária, recurso lista estudos de 2013 e 2014 que já comprovavam essa propriedade.
A Herbarium, por sua vez, apresentou outros três estudos entre os anos de 2007 e 2009. Para a empresa, os documentos comprovam a utilização do óleo de milho como excipiente em fórmulas orais gordurosas para aumentar a biodisponibilidade de moléculas pouco solúveis em água, caso do CBD. O último estudo apresentou a utilização de CBD e THC contendo aromatizante em pacientes com esclerose múltipla, já prevendo o uso de antioxidantes, como butilhidroxianisol (BHA), outra reivindicação da Prati-Donaduzzi.
A empresa argumentou que a Prati também não apresentou dados comparativos com formulações contendo outros óleos para comprovar a alegada biodisponibilidade ou estabilidade superior da composição com óleo de milho. Sobre as concentrações de antioxidante, adoçante, aromatizante e conservante da composição reivindicada, a Herbarium entendeu “que a ausência de tais definições torna a reivindicação em lide demasiadamente ampla, não comportando o que está (…) no relatório descritivo da patente”
“Uma estratégia óbvia”
Já a advogada Letícia Provedel se atentou que o uso do BHA como antioxidante em preparações farmacêuticas é amplamente difundido, “sendo óbvio para um técnico no assunto escolher o BHA como a melhor opção para essa composição”.
“O ingrediente ativo CBD é altamente instável e sua conversão para THC é também amplamente conhecida. Portanto, empregar um antioxidante acompanhado de um ingrediente instável também é uma estratégia óbvia para um técnico no assunto. Assim, não há nenhum efeito técnico surpreendente para o emprego do BHA na composição”.
O que diz a Prati-Donaduzzi
A farmacêutica paranaense não está se manifestando para a imprensa sobre a patente do canabidiol. Contudo, no parecer técnico do INPI, a empresa se defende. Sobre o estudo de 1996 de Zuardi, disse que o “documento não revela toda a faixa de concentrações da formulação da invenção nem provê informações sobre a forma de produção da formulação. Apenas é revelada uma composição em baixa concentração de CBD, sem qualquer informação sobre excipientes, solubilidade, biodisponibilidade e estabilidade”.
A Prati também alegou que o fato de combinar CBD com óleo de milho não é objeto da invenção e não resolve os problemas técnicos mencionados.
“As pesquisas conduzidas pelos titulares demonstraram que é o conjunto de fatores que resolve o problema e isso não é óbvio aos técnicos no assunto. A patente delimita quais são estes fatores”.
Sobre os documentos trazidos pela advogada Provedel, a Prati argumentou que “tratam unicamente de estudos voltados a verificar a eficácia da aplicação de canabidiol para o tratamento de epilepsia, sendo em nenhum momento descrito soluções para problemas técnicos de novas formulações com elevadas concentrações de CBD”.
Contudo, o INPI deu razão aos recursos e o colegiado votou pela anulação da patente.
“O parecer conclui que o colegiado considerou a patente ‘ausente de atividade inventiva à luz do documento de Zuardi’ e sugeriu a anulação da concessão da patente “uma vez que não atende os requisitos de patenteabilidade disposto nos artigos 8° e 13 da Lei de Propriedade Intelectual.”
Os óleos de CBD da Prati-Donaduzzi são os únicos com autorização sanitária da Anvisa para venda em farmácias. Pelo menos outras 10 empresas aguardam a mesma autorização.
Prati quer patentear mais 18 canabinoides
Além da carta patente – que está em vigor – a Prati-Donaduzzi também reivindica outros 18 dos quase 100 canabinoides conhecidos na planta da Cannabis, através de um segundo pedido em análise no INPI (BR 12 2019 017588 8).
A empresa reivindica uma “composição oral líquida caracterizada por compreender canabinóides em um solvente oleoso” na concentração de 5 a 500 mg/mL. São esses os canabinoides:
- tetrahidrocanabinol (D9-THC)
- tetrahidrocanabinol (D8-THC)
- tetrahidrocanabinol-ácido (THC-A)
- tetrahidrocanabivarin-ácido (THCV-A)
- canabidiol ácido (CBD-A)
- canabidivarina ácido (CBDV-A)
- canabigerol-ácido (CBG-A)
- canabigerovarin (CBGV)
- canabinovarin (CBNV)
- canabigerol (CBG)
- canabicromeno (CBC)
- canabiciclol (CBL)
- canabivarin (CBV)
- tetrahidrocanabivarin (THCV)
- canabidivarin (CBDV)
- tetrahidrocanabinol (THC)
- canabidiol (CBD)
- canabinol (CBN)
- além de seus sais ou ácidos farmaceuticamente aceitáveis e combinações dos mesmos.
Com relação ao solvente oleoso, a farmacêutica lista um grupo que compreende quase 30 vetores diferentes, que vão do algodão ao azeite de oliva, passando por óleos de frutas, sementes e peixes.